A arte como ato político
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 30 de Setembro de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A compreensão de que arte e política são inseparáveis me aproximou de pronto dos fundamentos da 29ª Bienal de São Paulo, que está aberta ao público no pavilhão do Parque do Ibirapuera, desde o dia 25 deste mês, estendendo-se até o dia 12 de dezembro. Estou alinhado com os que, dentre outros atributos, admiram na arte a sua atitude subversora do senso comum. Com esse espírito visitei a Bienal na quarta-feira passada, dia 22, por ocasião do coquetel para convidados do Itaú Unibanco, patrocinadores do evento. Por quase quatro horas me deleitei com o que em tão pouco tempo foi possível apreciar dos mais de 800 trabalhos de 159 artistas selecionados.
Embora tenha me deslocado pelas praças, corredores e compartimentos dos três pisos do pavilhão, carregando o peso da impressão de estar sendo vigiado por um grande consenso internacional de curadores apegados à preferência pelo que o vídeo e a fotografia representam na arte contemporânea, saí contente da minha visita porque saí confuso e pensativo. Atribuo a causa dessa minha feliz inquietação ao efeito dos contrastes entre a inseparabilidade da arte e da política, princípio organizador da Bienal, e a relativa efetivação desse princípio, no que diz respeito à indistinção feita entre o que é arte e o que não passa de uso e técnica da tecnologia digital para o registro da realidade.
A liberdade de reler, de reinventar e de interferir no real está no genoma político da arte. Tive dificuldade de sentir essa afirmação nos pronunciamentos estéticos do conjunto dos trabalhos expostos. A maioria me pareceu perto demais da fisionomia de marginalidade já espetacularizada pelas mais diversas mídias de massa. É certo que a articulação desses relatos tem grande valor social e político, mas correm o risco de reduzir a função política da arte e o papel social do artista a uma mera crônica das nossas fraturas expostas. Esse tipo de decalque de circunstâncias, composto por referências visuais agressivas das desigualdades, acaba por deter no espelho das imagens o que está por trás delas.
A apropriação direta da realidade não necessita da arte, sob o aspecto de desestabilização da ordem dos sentidos. Cada qual faz a sua parte, matando, roubando, reprimindo, ameaçando, se omitindo, denunciando, demolindo, ateando fogo nas matas, nos mendigos e até filmando e fotografando tudo isso. Os estímulos de ficção instalados no cotidiano seriam assim os destinatários de si mesmos, por terem como endereço a vulnerabilidade humana. Os exageros na repercussão dos painéis “Inimigos” de Gil Vicente, nos quais o autor aparece executando, sem direito de defesa, personalidades nacionais e internacionais, demonstram a superficialidade da nossa expectativa com relação à arte.
Ao comentar a polêmica gerada em torno do trabalho de Gil Vicente, a cantora Mona Gadêlha, com quem tive a satisfação de fazer todo o percurso da Bienal, lamentou a predominância desse tipo de discussão em um evento tão grandioso. A autora de “Salve a Beleza” é pouco afeita ao uso do recurso da agressão de forma demasiadamente direta na arte, por acreditar mais na sutileza que nos instiga à reflexão nas entrelinhas. Concordo com ela, embora aceite com mais facilidade as manifestações agressivas na arte, desde que suportadas por referências culturais e estéticas que as justifiquem.
Assim, vi os painéis de Gil Vicente mais como uma legítima indignação contra os sistemas representativos do que como traços rudimentares de carvão sobre papel. Esse ato de catarse me fez lembrar o palhaço Tiririca que se tivesse expondo suas peças de campanha na Bienal, sob o pretexto de expressão humorística da antipolítica, estaria contribuindo muito mais com a sociedade do que as levando ao ar no horário eleitoral gratuito. Na Bienal, elas certamente teriam tanta repercussão quanto o trabalho de Gil Vicente e seriam mais expressivas do que a plotagem factual de Roberto Jacoby sobre a campanha presidencial.
Da forma que está conceituado, o trabalho que ocupa o vão central do pavilhão da Bienal deixa a desejar. Nuno Ramos, seu idealizador, fez um amplo viveiro no qual aprisionou três urubus, destacando-os como símbolo da negação, do luto, do carniceiro… O autor foi traído pelo senso comum e sua criação perdeu força. No céu da arte política a figura do urubu pegaria melhor se planasse em alguma corrente de ar aquecida pelo discurso transgressor da noção cultural e socioambiental dominante. Fora da caixa, a metáfora de um urubu preso significa a prisão de um agente de saúde da natureza e, consequentemente, uma forma de assegurar a liberdade de toda e qualquer sorte de carniça política e social.
Só por nos levar a turbilhões de pensamentos como esses a Bienal já cumpre a função política da sua ação cultural, que é oferecer exemplos de como, entranhada em si mesma, a arte é capaz de tecer uma política. Deixei o Parque do Ibirapuera naquela noite com a cabeça nadando a braçadas no “infinito próximo” do meu mar de interrogações. O título da 29ª Bienal é um trecho do poema “A invenção de Orfeu”, de Jorge de Lima (1895 – 1953): “Há sempre um copo de mar para um homem navegar”. A sensação de que a moda (e não a média) das obras expostas tem um frágil caráter artístico não evitou que eu reforçasse em mim a ideia de que enquanto houver arte o ser imaginativo não se deixará afogar.
Movido por essa disposição de apreciar as obras que dão dimensão oceânica aos mais simples copos de água, procurei não me deter ao que era inédito ou remontado, nacional ou internacional. A velha instalação de Anna Maria Maiolino está entre as obras que me fascinaram por seu caráter de atualidade radical: em uma sala toda branca, uma mesa preta aguarda os comensais em frieza sombria, com pratos servidos à base de terra adubada, da qual brotam fios de arroz e feijão. Trata-se de uma fala política extremamente revolucionária, por fustigar com impetuosa delicadeza os conflitos da geopolítica agrária e suas implicações no mundo dos negócios e na segurança alimentar.
A fotografia de Alessandra Sanguinetti também compõe a fração de obras que causam impactos próprios da arte em sua dimensão política. Dispostas em paredes que fatiam o tempo, as imagens de Sanguinetti mostram com volumosa textura de luz e sombra mais e melhor do que normalmente se vê. Em uma parede, a série procura interpretar o imaginário afetado pelo real nos últimos dias da infância das primas Belinda e Gille, uma bem magra e a outra gordinha. Na parede de frente, conta como as limitações do contexto social podem sufocar, mas não impedir que a fantasia siga seu curso de liberdade na cultura da infância. Neste aspecto, é maravilhosa a foto em que Gille, já adulta, amamenta um bebê, ao passo que sua filha mais velha fecha-lhe os olhos com as mãos, para que adivinhe quem é…
Do jeito que for, a 29ª Bienal reafirma sua importância como voz da arte contemporânea. Trabalhos como o congelamento de pêndulos e prumos, de Tatiana Trouvé; a coreografia de cabeças sobre manto branco, de Lygia Pape; e o redário de Rochelle Costi são essencialmente envolventes. Dessa paisagem mental fazem parte ainda as projeções de Kutluğ Ataman, com a inquietante teatralização da mendicância; o mural gráfico paulofreireano de Jonathas de Andrade; as fotos com denso relevo pictórico de Rodrigo Andrade; e as bandeiras nacionais sem cores, que Wilfredo Prieto intitulou simplesmente “Apolítico” para, deste modo, politizar mais ainda a sua intervenção.