A Bienal de Garanhuns
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.5
Quarta-feira, 14 de maio de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Entre a Zona da Mata e o Sertão pernambucano há uma área de transição conhecida como Agreste. Entre seus vales e colinas, numa altitude de 900 metros, encontra-se a cidade de Garanhuns, conhecida como “a cidade onde o Nordeste garoa”, com seu clima de serra, brumas e friozinho bom.

Garanhuns é uma cidade-tronco, com economia que se estende da pecuária de gado de leite e de corte até um comércio movimentado por duas dezenas de municípios localizados no seu entorno. Fundada em 1811, a cidade tem hoje 120 mil habitantes e está a 230 quilômetros de Recife.

Terra do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e do saudoso sanfoneiro Dominguinhos (1941 – 2013), Garanhuns destaca-se ainda pelas sete colinas que compõem sua paisagem e por ser “a Cidade das Flores”; tanto que seu principal cartão postal é um relógio de flores, com quatro metros de diâmetro.

Por conta do meu novo livro “Ciço na guerra dos rebeldes” (Cortez Editora), fui convidado a participar da II Bienal do Livro do Agreste, que começou no dia 9 e segue até o dia 18 de maio, em um pavilhão de 2,5 mil metros quadrados de espaço ocupado, montado na Praça Cultural Mestre Dominguinhos, em um dos mais elevados e bonitos logradouros públicos da cidade.

Embora Garanhuns já tenha em seu calendário turístico eventos consolidados como o Festival de Inverno, realizado em julho, a estrutura hoteleira deixa a desejar. Faz falta também um aeroporto mais perto, que poderia ser inclusive entre Caruaru (PE) e Campina Grande (PB), o que já reduziria pela metade o percurso a ser feito de carro.

Mesmo assim, vale o esforço para chegar e poder frequentar lugares especiais como as avenidas Santo Antônio e Rui Barbosa, com suas luminárias decorativas e agradáveis restaurantes. Na noite do domingo para a segunda-feira passada, senti esse prazer ao caminhar com o meu filho Lucas por suas calçadas molhadas a uma temperatura de 18ºC.

A Bienal de Garanhuns é uma feira em gestação, com algumas dezenas de editoras participantes e um bom sinal de compreensão dos garanhuenses quanto à importância do livro e da leitura como uma necessidade básica para o desenvolvimento, no sentido amplo, a ser atendida de forma continuada. É uma comprovação da importância das feiras de livros regionais.

É estimulante ver pessoas buscando nos livros algo que ofereça satisfação imaginativa, companhia à solidão dos pensamentos, ligação com outros seres e com outras existências, a partir de si, pela evocação das palavras. A obra literária, no entendimento do ensaísta búlgaro Tzvetan Todorov, mexe com nosso aparelho de interpretação simbólica, despertando nossa capacidade vinculativa, e prossegue por muito tempo depois do contato inicial.

A criação de uma bienal do livro é um sinal de sociedade que pretende se desenvolver pela superação das falsas evidências instaladas pelo consumismo. O estímulo ao gosto pela leitura (de livros e do mundo) repercute no desenvolvimento local, por meio do fomento à produção criativa e ao turismo.

Quando o poder público promove uma bienal, está demonstrando confiança nas aptidões das pessoas para melhorar a vida e o viver. Nos tempos atuais, torna-se cada vez mais urgente cultivarmos nossas raízes e antenas, na tecedura do tecido social. E uma bienal expande horizontes, pela ampliação de repertório e de oportunidades educacionais, pois, ao ler, a pessoa constrói significados.

Com a ascensão do poder de compra dos brasileiros na última década, sobretudo no Nordeste, elevou-se também o vácuo existencial com a projeção dos ideais de felicidade nos objetos. E o exagero da busca pelo consumo gera a doença social do consumismo, esse campo fértil para o qual o filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1873 – 1955) conceituou o “homem-massa”, aquele indivíduo destituído de visão própria do mundo.

O acesso a diferentes referenciais e a distintas perspectivas, como força transformadora, reforça o interesse por conteúdos culturais e históricos locais. Foi o que percebi no livro “Pingos de Garanhuns”, com anotações da professora Arlinda da Mota Valença (1903 – 1997), até então com originais restritos à família da autora, editado pelo recém-criado Instituto Histórico e Geográfico da cidade.

Dona Arlinda foi educadora do tradicional Colégio Santa Sofia, onde estudou e ensinou geografia. Para ela, “O traçado de Garanhuns foge à monotonia” (p.20) e sua história é marcada por um povo guerreiro, “Filho da tribo Cariri, neto do Tapuia que deixa o litoral e se embrenha pelo interior” (p. 29). Assim, a bienal vai abrindo caminhos para a cidade se pensar e se valorizar, enriquecendo os acervos de suas bibliotecas públicas, escolares e particulares.

No brasão de Garanhuns, o lema ad altiora tendere (tendência para as alturas) dá o tom do sentido de destino daquela gente, partindo da cultura. Há um movimento da cidade para dar o nome de Rodovia Mestre Dominguinhos à BR-423. Se continuar assim, vai longe! Afinal, entre os nomes das flores cultivadas por lá, encontram-se amores perfeitos, saudades e suspiros.