A CNEC perdeu o encanto
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Domingo, 03 de Março de 2002 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O colégio da CNEC em Independência fechou. De uma hora para a outra, centenas de estudantes receberam a informação de que estavam sem escola. Entre os desafortunados, alguns conseguiram vagas em outros estabelecimentos locais, outros estão se virando para ir estudar em Crateús e os outros… ora, os outros são os outros. Quem liga para os outros? E não foi somente lá no sertão onde nasci que a CNEC fechou as portas. Fechou por todo o país. Somente no Ceará foram 25 centros educacionais, dos quais três em Fortaleza, inclusive o João Pontes. O colégio Júlia Jorge vai virar uma dessas faculdades caça-níquel. Triste fim da mais brilhante concepção brasileira de movimento educacional.
A CNEC é uma borboleta que virou lagarta. Em seis décadas de existência fez a metamorfose ao contrário. Quando surgiu em Recife, no início dos anos 40, a então Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, fundada por estudantes nordestinos, prescrevia alguns conceitos de inflexão cultural que apenas mais recentemente passaram a ser levados em consideração. Visões como a de desenvolvimento local sustentável, de redução das desigualdades pelo voluntariado, de configuração associativa do tipo organização não-governamental e de funcionamento em sistema de rede, marcaram o seu ideário transformador. Com a saída dos idealistas e a entrada dos pragmáticos, virou um negócio comum, com os olhos voltados para o vil metal e para a manipulação política da educação.
A mobilização da sociedade era o grande estandarte dos cenecistas. Cada comunidade que sonhava em ter uma escola acessível era estimulada a eleger um conselho local multidisciplinar, que passava a assumir os rumos daquele estabelecimento. Assim, com a crença e o suor de milhares e milhares de pessoas empenhadas ao longo dos anos na melhoria das condições de ensino no Brasil, foi criado um patrimônio coletivo sem igual. Nem privado, nem governamental, simplesmente público. Essa é uma questão que deveria entrar em pauta nas câmaras municipais, nas assembléias legislativas e no Congresso Nacional. Já que os bens imateriais da entidade foram volatizados, seria bom acompanhar o que o atual presidente nacional da CNEC, o deputado federal carioca Alexandre Santos (PSDB), está fazendo ou pretende fazer com o patrimônio físico? Até o Centro de Treinamento e Lazer – CTL – de Guaramiranga, está na lista dos imóveis a serem vendidos.
Logo nos primeiros anos do movimento, o “g” de gratuito foi substituído pelo “c” de comunidade e houve aí um ganho formidável de conceito. Aquela escola não era gratuita, era paga pela sociedade mobilizada. E com a marca de Campanha Nacional de Escolas da Comunidade, a CNEC inovou também na idéia de uso do espaço escolar nos finais de semanas e feriados. Como o que deveria ser feito ou não com o excedente do dinheiro arrecadado em eventos comunitários passava por discussão nos conselhos, cada lugar desenhava a escola das suas próprias expectativas. Era curioso encontrar umas escolas da CNEC com capela e outras com piscina para uso extensivo aos familiares e amigos dos alunos e professores.
O caráter de auto-sustentabilidade imputado pela CNEC ao sistema de ensino que fomentava, começou a tomar um ar inexprimível de desconstrução a partir do momento que o Ministério da Educação “adotou” a coordenação nacional da Campanha, com direito a sede em Brasília. O estudo dos sistemas demonstra que a promoção, o prêmio, é a melhor maneira de neutralizar um processo revolucionário. Ao invés de dar apoio à viabilização do sofisticado modelo de participação com comprometimento da sociedade, animando a nova forma de gestão dos interesses coletivos, os gabinetes oficiais, em nome do reconhecimento ao feito cenecista, resolveram liberar verbas para “ajudar” a CNEC.
Acontece que o envolvimento da comunidade idealizado pelos cenecistas não estava no plano da assistência, da “ajuda”, mas na esfera política, no campo da cidadania. Este, por sinal, é outro conceito antecipado no tempo cultural brasileiro pela CNEC. Quanto mais entrava dinheiro fácil mais reduzia a necessidade de mobilização comunitária para a manutenção das escolas. O elã da conquista cotidiana de um sonho foi cedendo aos efeitos dos recursos garantidos que antecipavam desejos e, de certa maneira, tranqüilizavam as pessoas de que os centros educacionais por elas edificados não seriam fechados. Foi um passo para a acomodação e para a cartolagem.
Diante dessa mutação, os conselhos foram sendo desmotivados como se tivessem perdido o sentido. As discussões conjuntas a respeito da qualidade do ensino e da busca de soluções criativas para o melhor desempenho da escola caíram no esquecimento. Em Pacatuba, uma fábrica de banana seca dentro do espaço escolar servia para a qualificação dos alunos adultos e fonte de renda para subsidiar os custos dos alunos carentes; em Novo Oriente, a merenda escolar era feita com frutas e verduras cultivadas no pátio da escola e, assim, Ceará adentro, Brasil afora, bem ou mal funcionava a CNEC. Mas essa identidade foi falsificada e perdeu o encanto. De borboleta polinizadora da educação cidadã, acabou lagarta devoradora da plantação cenecista.
DIREITO DE RESPOSTA, publicado em 14/04/2002
A CNEC e a nova proposta
Em resposta ao artigo ”A CNEC perdeu o encanto”, de Flávio Paiva, publicado nesse espaço, no dia 3 de março, o Vida & Arte publica hoje uma réplica do Mons. André Viana Camurça.
André Viana Camurça
Especial para o Vida & Arte
Nós que fazemos a Campanha Nacional de Escolas da Comunidade estamos vivenciando um período de transição, cujas conseqüências v.s.ª esboça com propriedade, sob alguns aspectos, relacionados ao novo momento por que passa a Instituição. Impossível seria manter a situação em que se arrastava a CNEC, não só no Ceará mas em todo o pais, onde a redução das matrículas, em contraste com a manutenção das despesas e o elevado nível de inadimplência, vinha gerando débitos de forma acelerada, principalmente trabalhistas, comprometendo irreversivelmente o futuro da Campanha.
O nosso legendário e saudoso Felipe Tiago Gomes, na sua visão de ideário transformador, talvez tenha sido, no Brasil, o primeiro idealizador de uma verdadeira ONG – Organização Não Governamental – com objetivos sociais de largo alcance, beneficiando o setor comunitário no campo da educação básica, quando criou em 1943 a CNEG – Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Se imaginarmos que essa iniciativa ocorreu há quase 60 anos atrás, podemos ter uma idéia exata dessa obra social que só no Estado do Ceará passaram por seus bancos escolares cerca de um milhão de alunos, muito dos quais ocupando hoje posições de destaque em nossa sociedade.
O modelo de escolas auto sustentáveis teve o seu momento em função da ausência total do Estado nas mais longínquas cidades interioranas, onde só restava ao cidadão, para a educação de seus filhos, a escola comunitária, construída e mantida por abnegados mestres que ofereciam os seus serviços voluntariamente. De lá para cá ocorreram mudanças de toda ordem, seja no campo político, social, econômico e tecnológico, impondo novos conceitos às realidades organizacionais.
Mais precisamente, com a implantação da nova lei de diretrizes de base do ensino no país, a CNEC foi atingida pelo determinado e correto objetivo do Estado brasileiro de cumprir determinação constitucional, segundo a qual, compete ao poder público a responsabilidade de educar o cidadão. O Orçamento da União passou a contar com vultosas verbas destinadas aos governos estadual e municipal, para atender de forma definitiva o ensino médio e fundamental, respectivamente, ampliando benefícios e motivando os alunos das escolas públicas, oferecendo merenda e transporte escolar gratuito, bolsa escola e melhorias do ensino com a requalificação dos professores sem nenhum ônus para os pais dos alunos. Em comunidades extremamente carentes como é o caso da maioria dos municípios onde a CNEC atua, só temos acumulado dívidas e débitos, principalmente trabalhistas.
Sem qualquer ajuda financeira, seja federal, estadual ou municipal, a CNEC pouco tem recebido das comunidades que a construíram, ficando em alguns casos somente com o passivo a descoberto, contando tão somente com o seu patrimônio para honrar compromissos inadiáveis e socialmente justos como é o caso de indenizações e débitos trabalhistas remanescentes de processos judiciais. Nos últimos 5 anos, a redução das matriculas foi de mais de 53%, a inadimplência o ano passado foi de em média 30%. Algumas escolas que no passado recebiam de 700 a 800 alunos hoje não alcançam 150 alunos. Essa é uma realidade que não permite somente uma contemplação, quando ainda temos condição de salvar a Instituição.
O que se pretende com o pragmatismo da educação de mercado é redirecionar a CNEC para um modelo que permita a sua sobrevivência, preservando toda a sua mística existencial onde os princípios da responsabilidade social, da filantropia e do atendimento aos mais carentes sejam mantidos como um diferencial institucional.
Em sua estratégia para consolidar a nova fase de atuação no cenário educacional que se apresenta, a CNEC tem incentivado o crescimento do 3º grau com a instalação de faculdades onde, só no sul do pais já são mais de 18 implantadas e sete em processo. No nordeste, estão em processo, três no Estado do Rio Grande do Norte e duas no nosso Estado. São projetos destinados às comunidades de poder aquisitivo menos privilegiado, longe, portanto, de serem ”caça níqueis”.
O que diferencia as faculdades particulares das faculdades comunitárias, como é o caso da CNEC, é que a Instituição não visa lucro, ou seja, não há a necessidade da remuneração do capital investido, podendo cobrar uma mensalidade inferior à do mercado, sem perder a qualidade do ensino oferecido.
Outro setor que a CNEC atuará é o do ensino profissionalizante. Três escolas destinadas a esse fim já estão em construção em Brasília, Minas Gerais e São Paulo, mais 4 projetos já foram aprovados pelo PROEP – Programa de Expansão do Ensino Profissional. O Ceará terá a sua primeira escola profissionalizante na serra de Guaramiranga, onde funcionou o CTL – Centro de Treinamento e Lazer, (até a aprovação e implantação da escola, aquela propriedade será arrendada e continuará funcionado como pousada).
Esse é o contexto em que está acontecendo a reestruturação da CNEC no Ceará. Todas as escolas que conseguirem manter com eficiência e qualidade a prestação dos serviços educacionais às suas comunidades serão incentivadas e fortalecidas por sua própria capacidade de ultrapassar os obstáculos a que Instituição está sendo submetida. Só como exemplo, temos no interior do Estado, escolas que necessitam de selecionar alunos em função da procura ser maior do que a oferta de vagas. A nova estratégia da CNEC é substituir a quantidade por qualidade, só assim será capaz de oferecer uma escola de qualidade diferenciada pelo nível de aproveitamento dos seus egressos, para comunidades que já as tem gratuitamente.
Mons. André Viana Camurça é Presidente da Diretoria Estadual da CNEC-Ceará