A Serra da Barriga, solo sagrado e sede principal do Quilombo dos Palmares, está sendo preparada para receber turistas e estudiosos da luta dos negros no Brasil, de forma a contribuir para a compreensão da importância dessa matriz étnica na formação da cultura, da economia e da política brasileiras. Esse passo não foi fácil de ser dado, pois havia uma resistência, especialmente por parte de integrantes dos movimentos negros, que, por legítimo zelo, queriam proteger a venerabilidade da área, reservando-a a manifestações de culto afro-descendente, embora Palmares, que neste 2007 faz 410 anos de fundação, tenha sido um verdadeiro caldeirão de compartilhamento das culturas negra, indígena e até de brancos fugitivos.

O diálogo perseverante, tecido nas duas últimas décadas, resultou no entendimento de que o conjunto histórico e paisagístico da Serra da Barriga diz respeito a toda a gente mestiça brasileira e não apenas ao povo negro. A grandeza dessa decisão possibilitou o desenvolvimento de uma pesquisa arqueológica que está sendo feita em sítios que ainda não tinham sido explorados. Estive recentemente em União dos Palmares (AL) e visitei as escavações no topo da serra, onde está previsto ser inaugurado, no próximo dia 21 (ou em data de abril, a ser marcada conforme agenda do governo federal) o Parque Memorial Quilombo dos Palmares, com casa de farinha, réplica de um palácio africano, praça de capoeira, ocas indígenas, espaços de contemplação e equipamentos de apoio turístico.

 

O lugar é magnético. Lança de si uma força guerreira quilombola em resquícios de Mata Atlântica a 500 metros acima do nível do mar. Pelas frestas dançantes das árvores avista-se lá em baixo o tapete quadriculado do canavial vencedor. E imaginar que no seu conjunto de povoações a república livre do Quilombo de Palmares chegou a ter cerca de 20 mil pessoas e que resistiu por quase cem anos (1597 – 1695). Por três séculos Palmares foi desvirtuado na agenda brasileira e Zumbi, seu herói de táticas e ataques noturnos, foi reduzido à conotação pavorosa de morto-vivo. Ao visitar a comunidade do Muquém, formada por remanescentes quilombolas que trabalham artesanato utilizando-se de técnicas de seus antepassados, senti a presença de Zumbi no toque das mãos pacientes moldando a argila.

No ano de 1978, o dia da morte de Zumbi, 20 de novembro, passou a ser considerado o Dia Nacional da Consciência Negra. Dez anos depois, a Serra da Barriga foi reconhecida como Monumento Nacional. São fatos que vão alterando a angulação da historiografia brasileira, que antes interpretava a resistência dos escravos negros simplesmente como manifestações marginais de mera dimensão antiaculturativa. Em União dos Palmares vem sendo implementado um projeto intitulado ´Zumbi visita a escola´, por meio do qual o poder público está tentando, ainda com muita precariedade, estimular o orgulho da influência negra na região. Isso deveria ser um esforço da escola brasileira. A lei nº 10.639, de 9/1/2003, institui o ensino obrigatório da história da África e das populações afro-brasileira nos currículos do ensino fundamental e médio no Brasil, mas enfrenta dificuldades de aplicação por problemas relativos à formação de professores e à falta de material didático.

É dever de todo brasileiro, que acredita no vigor futurista da miscigenação, buscar compreender mais e melhor as relações do Brasil com o continente africano. Tem-se falado muito sobre a África. Falas que se misturam em contraditórias versões. É comum ver recortes de um continente de 30 milhões de quilômetros quadrados, com assinaladas diferenças geográficas e humanas, serem identificados genericamente por África. Em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, de 23/2/2007, o editor da revista Superinteressante, Leandro Narloch, escreveu, de forma um tanto caricatural, sobre o que chamou de mentiras da escola de samba Beija-Flor, com relação ao enredo ´Áfricas: do berço real à corte brasiliana´, que deu à escola de Nilópolis o título de campeã do Carnaval carioca deste ano.

O argumento de Narloch chama a atenção para o equívoco de ancorar o fenômeno da escravidão apenas no tráfico de negros para as Américas. ´Por rotas saarianas e orientais, os africanos venderam até 25 milhões de pessoas, mais do que o dobro das que vieram para a América (cerca de 11 milhões)´. Destaca que a riqueza dos reis africanos era decorrente da crueldade do trabalho escravo. Com relação ao comércio transatlântico de negros, argumenta: ´Eram negros africanos os homens que atacavam povos no interior da África, capturavam escravos, matavam fugitivos, construíam forquilhas para vender vários negros pelo pescoço (…) Também eram africanos vários colegas de europeus nos navios tumbeiros, traficantes riquíssimos…

Essa leitura, que aproxima setores da África aos costumes humanos do seu tempo, expõe uma verdade ferina, contestada pelo sambista e escritor Nei Lopes, autor da ´Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana´ (Editora Summus, 2004) que, em réplica no mesmo jornal, de 01/03/2007, realça com lucidez que a participação de africanos no tráfico negreiro não deve reduzir o tamanho da responsabilidade dos europeus na tragédia. Denuncia que Narloch, ao citar mentiras no tema da Beija-Flor, também mente, falseando a verdade histórica. Os dois textos, mesmo aparentemente contraditórios, são complementares. Precisamos de muitas versões para construir uma memória africana mais consistente do que a que temos hoje.

O debate é um caminho para compreendermos melhor as Áfricas e melhor nos compreendermos. Em cinco séculos de colonização tivemos três de escravidão. O tamanho e a intensidade da tragédia africana nos impulsionam a degringolar para a exaltação da África com uma idolatria corrosiva. Toda sociedade tem méritos e deméritos. Não é bom para a África nem para qualquer lugar do mundo certas adorações cegas. A África não precisa de bajuladores, precisa de respeito. Nossa relação com o continente africano merece ser muito mais do que uma rotina de desencargo de consciência.

No Brasil, a construção da memória africana confunde-se com a construção da memória do País. A história de Zumbi, por exemplo, tem paralelo na história de Mandu Ladino. Mandu, menino tremembé sobrevivente de maloca destruída; Zumbi, menino banto sobrevivente de mocambo destruído. Ambos foram adotados por padres e fugiram adolescentes para reencontrar seu povo. Ambos assumiram a liderança de sua gente, tornando-se guerreiros admirados por suas estratégias de ataque a fazendas e engenhos. Pelo olhar dos colonizadores, ambos eram assassinos periculosos. Ambos foram assassinados por lutar pela liberdade. Fizeram tudo isso em fins do séc. XVII. Um, na Zona da Mata; o outro, no Sertão. Ambos fazem parte de uma mesma história que precisa ser contada em nome do futuro.