A Cooperativa Pirambu Digital
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 23 de Fevereiro de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A 46ª Conferência Internacional da Educação, realizada pela Unesco, em Genebra, de 5 a 8 de setembro de 2001, colocou na pauta internacional a problemática da convivência no século XXI. A síntese das reflexões compartilhadas nesse evento classifica em quatro pilares as competências necessárias para isso: (a) aprender a conhecer; (b) aprender a fazer; (c) aprender a ser, e (d) aprender a viver com os outros (“Aprender a viver juntos: será que fracassamos?”, p.32, Unesco, IBE, 2003, Brasília). O documento coloca esse desafio às políticas voltadas à qualidade da educação.
Encontrei essas quatro competências em prática ao contratar a Cooperativa Pirambu Digital para desenvolver o meu novo portal de internet. Embora não seja um projeto de educação formal, sua atuação está ancorada nas dimensões cognitivas, afetivas e de pertencimento, para atuar em um cenário social e econômico impulsionado pelas transformações produzidas pela evolução científica e tecnológica. Integrando aprendizado e trabalho na vida cotidiana, os jovens cooperativados desenvolvem softwares, redes e sites, dão suporte técnico, recuperam equipamentos e promovem cursos e treinamentos.
Nessa experiência com características tão afeitas às culturas juvenis, eles ocupam espacialmente o bairro, combinando atividades produtivas com ações de extensão social, a exemplo da biblioteca-lan house, onde uma hora lendo um livro vale uma hora no computador; e o Condomínio Virtual, formado por moradores que se cotizam, escolhem entre eles um síndico do ciberespaço e a Pirambu Digital cuida de viabilizar o acesso. Assim, a cooperativa gera renda para os seus cooperados e participa efetivamente da vida comunitária.
O senso do coletivo, implícito nesse tipo de ação, realça os itinerários de apropriação dos valores do bairro, identificados em estudos de sociologia do cotidiano. “É necessário considerar, na compreensão e avaliação dos coletivos juvenis, que alguns jovens, em especial aqueles que vivem em grandes cidades, articulam-se preferencialmente em redes de ‘socialidades’, buscando formas mais autônomas e, por vezes, autogestionárias, de ‘estar juntos’ (BORELLI, MELO ROCHA e OLIVEIRA. “Jovens na cena metropolitana”, p. 42, Paulinas, 2009, São Paulo).
No próximo ano (2013) esse projeto vai fazer vinte anos do seu marco inicial (1993), quando o professor Mauro Oliveira, então diretor da Escola Técnica Federal do Ceará (ETFC), hoje Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), aproximou a escola do bairro do Pirambu, numa parceria com o Movimento Emaús, que, na ocasião desenvolvia um trabalho de proteção à infância em situação de risco, no que era uma favela estigmatizada pela violência e pela pobreza, desde a década de 1930, quando aquela área litorânea foi transformada em campo de concentração de refugiados das secas.
O professor Mauro contou no evento de lançamento do site (30/01/2012) que ao ver o esforço do Emaús, tratou logo de tentar fazer alguma coisa; e a primeira ideia que lhe passou pela cabeça foi a de criar uma programação que levasse as crianças do Pirambu para tomar banho de piscina e a mexer em computador na Escola Técnica. Um dia, em uma dessas idas ao bairro ele ouviu uma conversa que perturbou a sua consciência de educador. Ao descer do ônibus, uma criança foi abordada por outra, que estava na rua, querendo saber de onde ela vinha. Informada de que era da “escola tec”, reagiu dizendo assim: “Abestado, tu pensa que tu me engana, aquela escola não é pra tu não!”
O fato de uma escola pública não estar no imaginário de possibilidades daquele menino de periferia foi a fagulha que levou Mauro Oliveira a idealizar e implementar o projeto Pirambu Digital. “É um projeto relativamente barato, que tem resultado, que mexe na autoestima das pessoas. Tenho dito que educar não é dar tablets, nem lousa digital; educar é permitir o
florescer da autoestima, para que esses jovens sejam felizes”, desabafou. Mesmo assim, foram necessários dez anos para que fosse iniciado (2003), com o apoio da LG, o programa de formação de jovens em informática, que, criaria as condições para dois anos depois (2005) nascer a Cooperativa Pirambu Digital.
Movida pela lógica da descoberta, a Pirambu Digital passou a possibilitar em suas vertentes econômica e social um rompimento com a fadiga da rotina. “Observando-se os meandros do cotidiano juvenil de uma periferia urbana – nos usos que os jovens fazem de seus tempos, nas linguagens que utilizam para definir e expressar a reflexão que fazem de suas trajetórias e de suas aprendizagens -, é possível perceber que, mesmo naquilo que se repete todos os dias, ou seja, na rotina, ocorrem rupturas e reinvenção dos modos de viver a juventude, em geral a partir das culturas juvenis” (STECANELA, Nilda. “Jovens e Cotidiano”, p.31. Educs, 2010, Caxias do Sul).
Em seis anos de atividade, a cooperativa vem acumulando uma experiência de desvio da repetição do dia a dia, aproximando os jovens do bairro entre si e com clientes, nos diversificados trabalhos que aparecem para eles realizarem. O depoimento da presidenta Josilda Ribeiro foi para mim um presente naquele dia de festa. Ela disse que a Pirambu Digital já mudou a vida de muitos jovens do bairro, inclusive a dela. Relatou que após terminar os estudos ficara sem perspectiva de futuro. A expectativa de cursar uma faculdade e de se profissionalizar nasceu com os motivos para estudar aportados pela ideia da cooperativa.
O estudo de Borelli, Melo Rocha e Oliveira trata bem essa problemática abordada por Josilda. “Entre os jovens de classes populares a continuidade dos estudos e o adiamento da entrada no mercado de trabalho formal ou informal passa a ser um horizonte de expectativas e não propriamente uma condição de vida concreta, passível de realização” (p. 55). Corrobora ainda com a sintonia da Pirambu Digital ao afirmar que os computadores e os jogos eletrônicos são atualmente os principais responsáveis pelo uso do tempo dos jovens (p.123) e que a maior parte dos jovens associa independência à autonomia financeira (p. 101).
Pensando no quão complexa é essa realidade, foi mais bonito ainda ouvir a Josilda falar com orgulho do cotidiano da Pirambu Digital: “A gente tem meninos aqui que começam sem saber nem ligar um computador. Eles recebem curso de informática básica, depois aprendem informática mais avançada, aprendem ferramentas novas e passam a devolver profissionalmente suas habilidades. E todo mundo aprende muito rápido, porque o pessoal aqui do Pirambu tem uma capacidade muito grande de aprender rápido”.
O Ministério da Educação bem que poderia investigar melhor esse tipo de laboratório econômico e social. Está em linha com os esforços de “agregar os princípios e fundamentos da educação básica que articulam cultura, conhecimento, tecnologia e trabalho, como direito de todos e condição de cidadania e democracia efetivas (“Políticas públicas para a educação profissional e tecnológica”, p. 59, MEC, 2004, Brasília-DF).
Com um pouco mais de atenção e fortalecimento, essa experiência, que tem testada as quatro competências definidas pela Unesco como essenciais para “aprendermos a viver juntos”, poderá ser replicada em outras comunidades, através de políticas públicas de educação, no sentido pleno. Por enquanto, o bairro do Pirambu, com mais de 350 mil pessoas, ainda não tem nem um pé de universidade; mas não há razão para duvidar da qualidade da semente.