A cópia livre na TV digital
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 26 de Julho de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Com a sofisticação e evolução dos recursos de comunicação a economia do imaterial multiplica a sua importância em todo o mundo. As possibilidades que as novas tecnologias oferecem tornam-se motivo de discussões que precisam ser mais e mais aprofundadas, a fim de que os avanços da técnica possam ser acompanhados pela real democratização dos conteúdos. O caso da adoção ou não do sistema de restrição de cópias na TV digital brasileira é um desses pontos de grande importância pública, que vêm sendo conduzidos praticamente por interesses privados.
Quanto mais aumenta a facilidade de acesso de comunicação, mais o etéreo assume a sua condição de matéria-prima estratégica nos meios digitais. Esse concurso de circunstâncias constitui um fenômeno cultural, social e político e não apenas econômico. A questão da cópia livre na TV digital não se restringe aos direitos dos consumidores. Ela passa pelo redesenho das formas de arrecadação dos direitos autorais, pelo respeito à independência do telespectador, pela melhoria do sistema democrático e, principalmente, pela desconstrução criativa no processo de circulação de bens culturais e do entretenimento.
Limitar o direito de fazer cópias apenas às estruturas empresariais que ganham dinheiro com DVDs legais ou não, quando a tecnologia possibilita que as pessoas possam gravar em casa programas com qualidade digital, para rever e pesquisar quando e o quanto quiserem, é de um exclusivismo inaceitável. A liberdade de escolha, posta no plano do domínio do que realmente se deseja ver, é fundamental em uma sociedade vocacionalmente aberta como a brasileira. Se fosse possível estabelecer uma ordem de prioridade de acesso às maravilhas das novas tecnologias, eu arriscaria dizer que a TV digital deveria preceder à internet no que está convencionado chamar de inclusão digital.
A radiodifusão tem isenção fiscal exatamente para dar livre acesso ao que produz e ao que leva ao ar. Este é um princípio da democratização da informação que cabe perfeitamente no quesito da cópia livre. A exemplo das gravadoras de CD e de DVD que se encontram à venda no mercado, os aparelhos da televisão digital podem e devem permitir que se façam, sem restrições, cópias dos programas exibidos. A condição de gravar é uma condição de experienciar a relação com o objeto e sua extensão, em um patamar bem diferente do que foi estabelecido até hoje.
Uma das bem fundadas críticas feitas à televisão é a de que ela coloca o telespectador em uma situação de não necessidade de sustentação da sua escolha, pois, mesmo hipoteticamente integrado à comunidade da audiência, ele está confortavelmente isolado. Poder gravar e estar autorizado a gravar é uma situação que contribui para a elevação da percepção, tendo em vista que escolher o que gravar é bem diferente de uma simples opção por canais. O telespectador passa a ter a chance de poder tirar o melhor proveito do que entra em sua casa nos braços dos patrocinadores.
A TV digital em si já tende a melhorar o desempenho do telespectador como sujeito e, sem restrição de cópias, certamente produzirá nele uma repercussão cognitiva que não exercita no estado atual. Além do controle remoto, que intensificou o ato de mudar de canal a todo instante, gravar altera o tempo de uso da televisão e sugere algum sentido concreto de busca. A possibilidade de escolha de gravação produz maior comprometimento do telespectador com o que ele pensa, sente e pretende assistir. Ninguém vai gravar um programa apenas por gravar e isso é o que poderá dar ao telespectador a oportunidade de superação do estágio de não-pessoa sofrido por ele no modelo tradicional.
Poder copiar programas em alta definição e à revelia das grades de programações estabelecidas pelas emissoras, coloca o telespectador na posição de significador do que ele procura na televisão. O desempenho das pessoas, no caso de reinvenção do uso da televisão, as prepararia até mesmo para melhor servir-se do computador na internet. Estou falando de 91,4% dos lares brasileiros com aparelhos de televisão, contra 13,7% das residências onde existem micros com acesso à internet (PNAD/IBGE-2005). Nas comunidades escolares a possibilidade de repassar e de discutir temas de interesse pedagógico local, também se constitui no desvendar de novos horizontes.
A tecnologia mudou a realidade e essa mudança precisa favorecer o maior número de pessoas e da forma mais plena possível. A implantação do sistema de restrição de cópia (DRM) protege apenas o mercado em favor das minorias que controlam a indústria cultural e do entretenimento. A cópia livre na TV digital não é nenhuma panacéia, mas é uma maneira de desterritorizalizar a distribuição do poder da informação. A conquista do direito de fazer as cópias que bem quiser, em padrão digital, deve ser encarada como parte do amadurecimento da cidadania na nossa democracia empírica.
O argumento de que a cópia livre na TV digital estimularia a pirataria é um blefe das corporações que está ancorado principalmente nos naufrágios da indústria fonográfica e seus excessos no perverso controle da nossa música. Elas costumam usar os autores como escudo dos seus interesses, quando sabemos que o modelo atual de recolhimento de Direitos Autorais tem arrecadação e rateio muito precário. Tudo isso precisa ser revisto e a boa hora para encontrar soluções equilibradas é a que mexe com muitos interesses. Os avanços da TV digital reforçam inclusive a necessidade de encontrar saídas para os problemas referentes à cópia na internet.
Questões como a da cópia livre na TV digital são polêmicas porque ameaçam de imediato a cobiça dos donos do mercado, enquanto a internet, por atender a uma estratégia mais ampla e de longo prazo, ainda esbanja a sensação de ser uma mídia indubitavelmente democrática e cheia de gratuidades. Mas a internet também tem dono, pois os Estados Unidos possuem quase a totalidade do controle sobre o sistema de domínios em todo o mundo. Dos 13 servidores-raiz que operam a internet no planeta, 10 deles estão nos EUA e os outros três foram repartidos entre Inglaterra, Suécia e Japão. A responsável pelo sistema de distribuição e de operação de domínios para qualquer país é a Icann, uma entidade mantida basicamente por empresas estadunidenses, que está subordinada aos interesses mercadológicos e às leis norte-americanas. Está, portanto, ao alcance dos EUA o poder de derrubar a internet dos lugares que, por algum motivo geopolítico, considerarem não merecedores desse acesso.
O discurso do mercado de tecnologia é o de que chegamos à sociedade do conhecimento. Parece ser o único discurso autorizado a interpretar o que se passa na trama da rede virtual, mas ele falseia a realidade ao confundir capacidade de transmissão de dados e de informações com conhecimento. O conhecimento é a informação elaborada, percebida, experimentada. Esse não é um exercício fácil de ser feito, nem algo que seja oferecido por quem se beneficia com a situação vigente. O problema não é de quem domina e de quem não domina as novas tecnologias, mas de quem sabe e de quem não sabe o que quer encontrar diante de tantas possibilidades. Neste aspecto, a cópia livre na TV digital é um passo importante no aprendizado da escolha.