A criação de lagarto
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 28 de outubro de 2015 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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Das lembranças referentes aos momentos que, quando adolescente, eu ficava matutando com o meu pai Toinzinho (09/09/1921 – 20/10/2015), ocorridas nesta semana da sua viagem de volta ao plano sagrado da natureza, uma traduz bem o quanto a liberdade imaginativa estava na essência da nossa relação: a da produção de ovo de lagarto como uma das possíveis soluções para o déficit de proteína em tempo de escassez.

Na infância eu tinha montado uma fazenda de calangos-verdes, que eram capturados em latas de leite em pó e alimentados com verdura. Fazia um furo na parte central da tampa, cobria de terra e colocava nas veredas, ficando somente o buraco à vista. Quando eles se sentiam perseguidos, entravam no buraco artificial e caíam na armadilha. O curral era cavado no chão, com fundo de lata coberto de terra e com as laterais revestidas de lata de querosene para evitar fugas.

Dessa brincadeira com calangos-verdes para a ideia de criar camaleão foi preciso apenas a cumplicidade de um pai observador e amante da natureza. Tudo começou no dia em que, sentados às margens do rio Cupim (que passa no quintal da nossa casa, em Independência), vimos um lagarto verde sair todo faceiro de uma loca no barro de aluvião. Meu pai me disse que era naqueles buracos que os camaleões depositavam seus ovos.

A minha primeira reação ao saber que os camaleões botam ovos foi a de pensar no quanto deve ser forte um ovo capaz de gerar um lagarto. Perguntei se era possível criar esses bichos como se criam galinhas e, em vez de responder de pronto, o meu pai me convidou a observá-los. E fizemos isso muitas vezes. Um dia ele até pegou um ovo para me mostrar sua casca dura, quase de couro, como quem procurava reforçar a minha tese da ‘supercomida’.

Vimos certa vez uma briga de camaleões. Eles estavam avermelhados, mas em determinada altura da luta um deles foi movimentando os nanocristais da pele, ficando pardacento, e caiu fora. É o mesmo que, por analogia, acontece quando as pessoas se agridem e uma delas amarela. Nós humanos também ficamos vermelhos quando estamos com raiva e a temperatura do rosto aumenta; e ficamos brancos quando temos medo e o sangue foge para evitar hemorragia em caso de corte.

Fiquei pensativamente admirado quando descobri que os olhos dos camaleões giram com independência um do outro. Mais do que botar ovos altamente nutritivos, aqueles répteis podiam trabalhar a um só tempo com duas imagens separadas e talvez fossem bem mais importantes para a ciência do que supúnhamos. Por meio daquelas saliências encouradas, primitivas, eles, diferentemente de nós, não necessitavam de um foco comum para obter a nitidez das coisas.

Com o falecimento do meu pai, lembrei-me do argumento dele quando, além da vantagem de ovos fortes, vimos na criação de lagartos outras possibilidades de aproveitamento dos seus atributos: “Pode ser importante para nós, mas viver em cativeiro não é da natureza deles”. Veio-me à mente a imagem do meu pai subindo em uma árvore de folhas azuis e flores brancas, como um devir-lagarto, o que me inspirou a fazer um haicai de despedida: o ser / a natureza / a viagem de volta…