Os impactos positivos e negativos das tecnologias digitais sobre a alfabetização e sobre a escrita nos dias de hoje ainda estão por ser dimensionados. As mensagens de texto ganharam muita expressividade nas últimas décadas e passaram a ser feitas basicamente nos teclados dos dispositivos digitais, não obstante o recurso dos aplicativos que transcrevem instantaneamente a fala para o texto gráfico.
Em paralelo, aumenta a dificuldade de alfabetização das crianças de famílias à margem da cultura escrita, situação que dia a dia se agrava enquanto problema público. Se é grave o atraso escolar, mais grave ainda é o atraso social que ele provoca. No fim das contas, o nível de desenvolvimento de um país está diretamente ligado às suas taxas de alfabetização. Mas o que é mesmo que está acontecendo com a alfabetização?
Desafiado por uma queixa constante que ouviu de professoras e de professores brasileiros, o linguista francês Élie Bajard (1934 – 2017) escreveu nos últimos anos de vida o livro “Eles leem, mas não compreendem. Onde está o equívoco?” (Cortez, 2021), obra póstuma na qual o autor propõe uma prática de alfabetização que segue o sentido contrário aos modelos vigentes da abordagem fônica e do construtivismo.
Essas metodologias, segundo Bajard, postergam o acesso ao significado em seus esforços de extração da pronúncia. Argumenta que alfabetizar não é somente transpor letras em sons, mas formar leitores de compreensão. O resultado desse descompasso presente no fracasso da educação brasileira está refletido em acompanhamentos sistemáticos como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa/OCDE), aplicado em adolescentes que concluem a escolaridade básica.
O autor, que trabalhou no campo da formação de docentes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental na Argélia, no Marrocos e no Vietnã, compartilha em seu último livro experimentações desenvolvidas no Campo Limpo, bairro da zona sul paulistana, e na cidade paulista de Marília, onde, nas últimas três décadas, uniu-se a educadoras e educadores para o exercício de práticas pedagógicas fora do postulado fonocêntrico, e com o intuito de atender as necessidades sociais de compreensão da leitura.
A obra de Bajard está voltada para a leitura da palavra na sua ligação direta com os sentidos. Em vez de preparar a criança para o domínio da transformação das letras em sons, o que se confunde com “saber ler”, ele defende, antes de tudo, que a alfabetização respeite o conhecimento idiomático da criança, considerando que a função da língua é veicular o sentido. Questiona, inclusive, o uso de textos com letras maiúsculas nos livros de literatura infantil e nos processos de alfabetização.
Nas páginas de “Eles leem, mas não compreendem” são descritas várias estratégias de facilitação do processo de compreensão, com diversos raciocínios e exercícios de uma pedagogia ativa, tendo a leitura e a escrita como instrumentos de apropriação do signo a partir de sua funcionalidade social e do próprio nome como parte da formação da consciência de si.
As contribuições Bajard para a alfabetização passam pela linguística, pela semiótica e pela potente inteligência das crianças das periferias. Sim, isso mesmo, aquelas que não vêm de famílias que tiveram oportunidade de letramento, mas que aprendem desde cedo a ler o mundo no jogo das desigualdades e da sobrevivência.