A cultura onde a vida acontece
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 11 de Outubro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Ao criar um conjunto de oportunidades para as pessoas se verem mais vezes pelo viés da dignidade e da grandeza das suas próprias manifestações culturais, o programa Mais Cultura, lançado pelo presidente Lula na quinta-feira (4) passada, no Teatro Nacional, em Brasília, revela claramente a visão do governo federal de que as políticas públicas de desenvolvimento prescindem dos valores instituidores do poder cultural local e suas inter-relações com os saberes de outras realidades.
A meta de ampliação dos atuais 630 Pontos de Cultura para 20 mil até 2010 demonstra, na elasticidade de sua ousadia, a priorização do Programa de Aceleração do Crescimento, PAC para com o desenvolvimento das atividades culturais comunitárias. O caráter integrador das expressões locais aparece no programa por meio da ênfase dada às bibliotecas, ao microcrédito cultural e à criação do vale-cultura.
Com a implantação do Mais Cultura o Brasil passará a contar com uma plataforma para o fortalecimento e a criação de ambientes onde as manifestações culturais se expressem em sua plenitude, produzindo uma conjunção de fatores que podem nos levar a um melhor discernimento entre a noção de subjetividade e a noção de identidade do múltiplo. Tornando-nos mais próximos do que somos teremos a oportunidade de abraçarmos a brasilidade, não como um conceito postiço, mas como um sentimento legítimo e compartilhado.
A importância de tomar a cultura como ponto original para o desenvolvimento local está no fato de serem os elementos culturais que dão a escala do pertencimento comum, através do amor, do trabalho, da culinária, dos ritos, das lendas, dos mitos e das manifestações artísticas e seus vínculos regionais, nacionais, continentais e cósmicos. O vigor de uma comunidade depende muito do entendimento que seus habitantes têm das dimensões do lugar onde a vida acontece:
O Mais Cultura pode ser um grande instrumento de contribuição à emancipação social nas diversas regiões brasileiras, por oferecer condições de produções e usos culturais paralelos e de certo modo complementares à indústria cultural. Como um novo sistema de funcionamento no âmbito da cultura esse programa estabelece expectativas de melhor aproveitamento dos sensores de motivação intrínsecos à questão local e que são capazes de desenvolver formas práticas de gestão ainda desconhecidas das mais badaladas doutrinas de excelência administrativa.
O sentido de localidade de resultados estampado nas justificativas dos projetos decorrentes das orientações neoliberais mora ao lado do sentido de comunidade prática, responsável pelo aumento da pobreza simbólica causada pela perda dos referenciais de significação nos indivíduos e nos grupos sociais. A aplicação do programa Mais Cultura tende a revitalizar o fazer cultural espontâneo nas mais diversas localidades das diversificadas regiões brasileiras.
A capilaridade na circulação dos recursos reforça a economia da cultura sem, no entanto, desgastar as experiências coletivas geradoras das características que nos distinguem enquanto comunidade, região e país. O debate que mais se aproxima dessa questão cultural está, via de regra, limitado à identidade. Porém, a racionalidade dos recortes sistemáticos a respeito da imagem que o povo de cada lugar necessita ter de si mesmo, acaba dificultada pela negação da emoção e da subjetividade.
O que costumamos chamar de identidade é a consciência de algo que, na definição de Muniz Sodré, vincula o sujeito a um quadro contínuo de referências, constituído pela interseção de sua história individual com a do grupo onde vive. O discurso demolidor do processo de financeirização do mundo vem tentando despolitizar o conceito de identidade sob o argumento psicanalítico de que cada pessoa é única e, sendo assim, tudo o que existe não passa de identificações de atos individuais e coletivos, como fatores resultantes da dinâmica de integração do indivíduo no grupo e de mobilização de suas pulsões, afetos e escolhas de consumo.
É certo que a clarificação de identidades contribui para a organização das relações sociais, mas não se basta, porquanto as referências humanas não se limitam aos códigos microssociais. As condições de vida coletiva são modeladas pelas ligações existentes entre os aspectos característicos da índole local e por valores transversais comuns à dualidade corpo e espírito. Isso faz com que o entendimento das forças pulsionais da cultura de um lugar necessite inclusive da observação das circunstâncias decorrentes das fontes de formação e informação dos fenômenos contemporâneos.
O conjunto de assemelhamentos a serem ponderados em torno de grupos sociais, em uma perspectiva de poder cultural local deve, por conseguinte, ir além da noção de identidade. Perseguir a investigação por esse caminho leva a uma dupla descentralização da dimensão de subjetividade: “de um lado o fato de ela habitar processos infrapessoais (a dimensão molecular) e, de outro, o fato de ela ser essencialmente agenciada em nível das concatenações de relações sociais, econômicas, maquínicas, de ela ser aberta a todas as determinações sócio-antropológicas e econômicas”, como definem Félix Guattari e Suely Rolnik.
Essa interpretação da teia cultural pelo olhar da psicanálise revela a existência de pontos de sensibilidades específicas que antecedem às estruturas do ego e aos conceitos identificatórios, que se desenvolvem independentemente de classificações e de etiquetas sócio-culturais. Por isso, o maior desafio de programas como o Mais Cultura está na necessidade de rompimento com a dimensão racional que normalmente norteia os programas destinados à cultura, levando as pessoas a perderem suas referências orgânicas, simplesmente pela incapacidade de percebê-las, valorizá-las e narrá-las.
O discurso da sustentabilidade utilizado nos processos de reorganização dos sistemas lógicos e subjetivos dificilmente consegue sair do conforto dos interesses do presente. Essa suposta comodidade limita-se, todavia, ao desenvolvimento da habilidade de lidar com efeitos imediatos, sem tempo ou interesse para o saber das causas mais profundas do fazer cultural. Os assemelhamentos se dão muito antes e se projetam para muito além das práticas específicas de sobrevivência.
A dimensão prioritariamente instrumental, comumente adotada pelos projetos de “responsabilidade cultural” provoca em muitos casos a exclusão da experiência mobilizadora dos fazedores culturais. Com isso, a comunidade vai perdendo seus elementos essenciais de aglutinação e aprofundando a sua pobreza de significado, resultante da fragilização de uma memória que lhe dê sentido de destino.
A forma como o Mais Cultura se apresenta sugere grandes vantagens descentralizadoras e de valorização dos interesses comunitários, onde a cultura floresce. O sucesso desse programa está diretamente vinculado a nossa capacidade de entender que apoiar a cultura é muito mais do que o ornamento de um conjunto de técnicas e processos que, muitas vezes travestidos de generosos, apenas envolvem a cultura em suas investigações e interesses políticos e comerciais.