Duas obras têm sido motivo da minha atenção nos últimos dias. Ambas refletem sobre o tema da democracia e suas ameaças. Uma, é a crônica poética cinematográfica Democracia em Vertigem, da cineasta mineira Petra Costa (Netflix), e a outra, o livro O Povo Contra a Democracia (Companhia das Letras), do cientista político alemão Yascha Mounk. Duas mensagens importantes neste momento em que, diante de um perigoso populismo, é preciso, antes de tudo, salvar a democracia.
Em seu documentário de contornos existenciais, Petra procura dar um desfecho justificável aos episódios de ascensão e queda do projeto Lula-Dilma. Com honesto e emocionante relato pessoal, ela tenta preservar a memória de suas crenças dando sentido aos acontecimentos, como se houvesse uma “maldição” por trás da responsabilidade de quem, por narcisismo, ansiedade ou desrespeito à confiança dos eleitores, contribuiu para chegarmos a um indesejável autoritarismo populista.
Os escritos de Yascha abordam a propensão mundial para o afastamento do sistema democrático diante do crescimento de figuras que se valem da política para ocupar o poder falando em nome da vontade popular. O drama posto por ele é sobre o que fazer quando grande parte da população já não acredita mais na democracia. O ensaísta alemão tem uma experiência privilegiada dando suporte aos seus argumentos, por ser filho de mãe judia-polonesa, e nunca ter se sentido confortável no país onde nasceu, passando a viver nos Estados Unidos e a adotar um pensamento acadêmico que não consegue separar democracia de liberalismo.
Em seu filme de alerta sobre a decomposição da democracia, Petra trata a questão pelo lado fatalista das tensões sociais, e faz isso poupando personalidades que admira, embora reconheça os equívocos praticados pelas lideranças de esquerda que se imiscuíram nos velhos esquemas de corrupção da política tradicional. A condição da cineasta mineira é a de quem teve acesso aos bastidores do mundo econômico e político do país, tanto por ser neta de um dos fundadores da construtora Andrade Gutierrez, implicada nas investigações da operação Lava Jato, quanto por ser filha de militantes de esquerda no período da ditadura militar no Brasil (1964 – 1985).
As teses de Petra Costa e de Yascha Mounk são bem construídas, curiosas e necessárias. Enquanto o filme da diretora mineira sugere que a política da ascensão social por meio da justiça distributiva brasileira mereceria triunfar, o livro do ensaísta germânico propõe que não convém projetar o valor de tendências passadas como reserva a ser retomada no futuro. O enigma a ser desvendado, segundo a inspiração dessas obras, oscila entre direitos sem democracia ou democracia sem direitos, entre um populismo legalista e segregador, com poder estruturado em nichos de minorias, e outro teocrático e beligerante, organizado para assegurar demandas da moral conservadora, tendo em contrapartida a garantia da concentração de riqueza e de renda, decorrente das desigualdades sociais.
A representação exclusiva dos interesses do povo nas mãos de populistas autoritários, instalada no Brasil e em boa parte do mundo, cresce à medida que os derrotados insistem nos mesmos métodos, práticas e bandeiras que têm se mostrado ineficazes, contribuindo contraditoriamente para a consolidação da democracia sem direitos.