A educação com música
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 05 de Abril de 2012 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O som vem de antes dos humanos; é um fenômeno natural abundante e atemporal. A combinação de sons com intervalos foi aprimorada e virou música. Numa perspectiva histórica e social, a fala dos sons e os sons da fala estão na base da nossa comunicação. Assim, a contribuição da música na formação humana vem de épocas pré-linguísticas. Depois vieram os instrumentos musicais e as festas da espiritualidade, da cultura e da criatividade nunca mais acabaram.
No Brasil, as referências musicais nativas foram ofuscadas com a chegada dos padres Jesuítas a partir de meados do século XVI. Os padres da Companhia de Jesus se valiam da música para a catequese e para o ensino da leitura e da matemática. Também nesse período, a globalização econômica do mercado da escravidão passou a trazer para o que viria a ser o Brasil os irmãos negros e, estes, trouxeram consigo a sua cultura musical.
No século XVII o ensino do canto foi oficializado nas aldeias e, no século XIX, a noção de música e os exercícios de canto foram formalizados no currículo escolar brasileiro. A nossa música ganhou uma rica contribuição dos imigrantes europeus e asiáticos, que se tornaram brasileiros no final do século XIX e início do século XX. Mas foi na primeira metade do século XX que o projeto de Educação Musical de Villa-Lobos ganhou dimensões de política de governo. E, na segunda metade, o País passou a ser novamente colonizado pela formação musical da comunicação de massa.
Nesse vaivém de sons, sentidos e multiculturalismo, das sonoridades locais e daquelas vindas com as caravelas ou nas antenas de radiodifusão, nasceram a diversidade e a pluralidade da música brasileira. Em meio a povoamentos, trocas e antropofagias reverberantes, ganhamos até um musicólogo alemão, naturalizado brasileiro, o professor Koellreutter, que trabalhou a música como instrumento de formação integral, desenvolvimento corporal e socialização. E quando parecia que potencializaríamos esses vínculos e reafirmação da música no cotidiano escolar, a ditadura militar afastou a educação musical das escolas.
Somente no final da primeira década deste século XXI, a música voltou a ser oficialmente conteúdo obrigatório no currículo escolar brasileiro. No artigo “A música na educação” (DN, 18/11/2010), manifestei a minha convicção do quanto essa decisão do governo federal tem de importância “para o desenvolvimento e a intensificação do senso estético e valorização da integração pela arte na grade curricular da Educação Básica – Infantil e Fundamental – nas escolas brasileiras”. Estávamos naquele momento prestes a chegar aos três anos determinados pela Lei 11.769/2008 como limite para a adaptação dos sistemas de ensino do País à educação com música.
Quatro décadas de tempo perdido (1971 – 2011) suscitaram muitas indagações de como fazer isso e até prováveis dúvidas da sua importância. Mas a Ordem dos Advogados do Brasil – Secional Ceará, que tem na sua Comissão de Direitos Culturais o advogado e músico Ricardo Bacelar (ex-Hanói Hanói), está cobrando a aplicação da lei. A repórter Mozarly Almeida cobriu a coletiva realizada na semana passada, na qual a OAB-CE “anunciou a decisão da instituição de enviar ofício a oito mil escolas cearenses, da rede pública e privada, e também aos secretários de educação municipais do Estado cobrando a aplicação da norma” (DN, p. 5, 29/03/2012).
O tema é de grande interesse social. Requer ser intensamente discutido ao passo que vai sendo implementado. Não é a situação ideal, mas é a que está posta. E foi pensando na escassez de material de apoio que duas produtoras culturais paulistas, Gisele Jordão e Renata Allucci, se uniram ao músico Sérgio Molina e à psicóloga educacional Adriana Terahata, para editar, com patrocínio da Vale, o livro “A Música na Escola” (Allucci, 288 pág. São Paulo, 2012). A publicação, que tem edição digital acessada pelo site “www.amusicanaescola.com.br” é uma excelente contribuição do Sudeste ao debate nacional.
O livro explicita a complexidade da questão, mas encara os fatos com simplicidade. Com a colaboração de educadores, músicos e especialistas, abrange desde referências históricas até propostas de exercícios, passando por informações e pontos de vista. São 22 artigos inéditos, 39 práticas de educação musical – nenhuma delas voltada para aula de instrumento -, dez abordagens de conteúdos e dez rodas de conversas, reunidas em quatro grandes blocos: (1) Justificativas de por que música na escola; (2) Fundamentos da educação musical; (3) A música do Brasil e do mundo; e (4) A educação com música.
Muitas das perguntas que todo educador se faz com relação à introdução de conteúdos da linguagem musical na escola estão contempladas nesse trabalho: “O que significa ensinar música?”, “O que deve ser ensinado?”, “Qual o papel do educador de música?”, “Quem é esse educador?”, “Qual deve ser a sua formação?”. O livro não traz respostas, ele apresenta pensamentos sobre tudo isso. Iramar Rodrigues, professor de sensorialidade, argumenta por exemplo, que se o professor de música “tiver princípios pedagógicos de base claros e precisos, e souber o porquê do trabalho a ser desenvolvido, ele não precisará ser um especialista” (p. 91).
Dentro desse recorte focado na compreensão do educador musical e considerando as variações de repertório, métodos, tempo de acontecer e condições objetivas de realização, Adriana Terahata defende um projeto educacional capaz de romper com a “aplicação” dos guias para educadores: “A educação é, antes de qualquer coisa, uma atitude ética, não sob a arrogância acadêmica, cientificamente correta (…), mas com o compromisso de pensar sobre, uma ciência engajada, comprometida” (p. 12). Em linha com esse pensamento, o musicólogo Carlos Kater propõe “uma educação musical capaz de oferecer estímulos ricos e significativos aos alunos, despertando atitudes curiosas e aumentando, por consequência, a disponibilidade para a aprendizagem” (p. 43).
O violonista Fabio Zanon chama a atenção para o tratamento diferenciado que deve ser dado a cada região do País e para o envolvimento dos pais nesse processo (p. 128). Carlos Sandroni, compositor e professor de etnomusicologia, recorre ao saudoso educador Paulo Freire (p.133) e ao músico Maurício Pereira (p. 143) para propor o aproveitamento dos canais de trocas entre analfabetos e letrados em música, comportamento referendado pelo músico e psicólogo social Ivan Vilela, em seus argumentos de que o mais relevante nesse aprendizado acaba sendo a crônica que “a maior expressão de música popular do mundo” (p. 141) faz dos anseios e acontecimentos ocorridos com as pessoas “que não tiveram a sua história registrada pelas vias comuns da escrita” (p. 135). Para ele, até mesmo por uma questão de finalidade histórica, deveríamos criar a nossa própria metodologia (p. 141).
Lucilene Silva, educadora musical da Casa Redonda, de Carapicuíba, onde a musicalização não está ligada a expectativa de resultados, que não o de suas qualidades transversais em todo o processo educacional, propõe que “diante da riqueza e diversidade da música tradicional da infância, é inegável a importância de tê-la como substrato principal na educação musical das crianças brasileiras” (p. 151). A música infantil realmente deve ter um lugar especial de sensibilidade na escola. Afinal, a cultura da infância é tão universal e atemporal quanto a música.