A experiência do pensamento
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 25 de Agosto de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O largo que fica ao lado da antiga estação de trem estava lotado. Educadoras, educadores, estudantes, autoridades, gente da cidade que acredita na importância da vida cultural do município. Era sábado à noite, dia 20 passado. Fui introduzindo o tempo na minha lembrança, enquanto via a cidade de Independência, onde nasci e passei a minha infância e adolescência, brilhando em sua festa de estímulo à experiência do pensamento; uma alegre reunião comunitária que vem sendo realizada há três anos na Casa da Memória e Estação Leitura da ONG História Viva.
Neste evento, duas solenidades convergem em suas dimensões de cultura e educação: a outorga do troféu Saci, de personalidade do ano, e a entrega do prêmio literário que leva o meu nome e que tem como finalidade estimular os jovens de 12 a 17 anos, das escolas públicas e privadas, a pensarem e a escreverem sobre temas que contribuam para o aprendizado do olhar, a partir de contextos ressignificados pela liberdade literária. É um momento que mistura emoção com aconchego, participação e espírito de cidadania.
Tem chamado a minha atenção o destaque que os integrantes dessa entidade vêm dando à educação em suas escolhas de nomes para homenagear e agradecer com o troféu Saci: em 2009, Maria Stela Bezerra, em 2010, Ozanira Macêdo Pinto e em 2011, Maria do Carmo Pimentel. Todas elas, respeitadas e admiradas educadoras, portanto, de merecido reconhecimento por parte da sociedade. Não há quem tenha tido a oportunidade de estudar em Independência que não tenha passado pelos ensinamentos dessas queridas professoras.
Embora funcione mais como um processo catalisador de interesses da juventude, o prêmio literário tem uma classificação, feita a partir das avaliações de uma comissão julgadora composta por educadores, profissionais liberais e defensores públicos atuantes no município. Nas categorias crônica, poesia, conto e literatura de cordel, que têm centenas de trabalhos inscritos, os estudantes Welson Gonçalves Silva, Gleiciana Rodrigues Lopes e Cecília Pimentel de Almeida Felismino da Silva, obtiveram o primeiro lugar, cada qual em uma das três versões do concurso realizadas até agora.
A fala de Cecília Pimentel, primeira colocada na versão 2011, sintetiza bem o clima favorável à expressão do intelecto e da fantasia, possibilitada pelo exercício da escrita e da leitura. Com 13 anos de idade, ela explicou as razões de ter escolhido a história de amor dos seus avós, para inscrever no tema “A mais bela história que já ouvi”, proposto pela História Viva. Disse que de tanto ouvir falar do amor do “Papai Pretinho, que hoje mora lá no céu, e da Mamãe Raimunda”, resolveu contar a história desses dois que “nunca dormiram brigados, passaram muitas dificuldades nessa vida, moraram na roça, sem energia elétrica, carregando água na cabeça, lascando lenha, caçando para alimentar a imensa família”.
No seu exercício de descoberta do olhar, a estudante do Ginásio Santana foi além da história em si e pesquisou sobre a “Porronca” de antigamente. É bom esclarecer que Porronca vem de “pau ronca” e era como entre o crítico e o jocoso se chamava Independência, devido às constantes e intensas brigas que aconteciam nas ruas da cidade. Cecília foi lá, procurou entender as algarobas, a mina de rutilo, o batalhão, o quebranto, as simpatias juninas e outros ícones e crenças da região para formar um juízo sobre o seu lugar e, assim, tecer à sua contação. Este é o sentido de escrever, enquanto ato de produção de possibilidades, de um pensar o ser e o vir a ser, com a cabeça livre das pressões cotidianas.
Em 2009, quando aceitei a utilização do meu nome para designar esse prêmio, o fiz com a compreensão de que ele poderia funcionar como dispositivo revolvedor das experiências do pensamento, na busca pelo fortalecimento dos valores existenciais, como estímulo a um jeito de pensar o mundo objetivo, a partir da evocação do humano. Três anos depois, percebo que ele tem contribuído de alguma forma para quebrar a lógica das coisas sempre apressadas e para colocar histórias em uma prática da vida assediada pelo efêmero. Os filósofos aristotélicos afirmam que em ultima análise, o que faz as coisas serem o que são é a finalidade para a qual foram criadas.
Cecília revelou em seu discurso que receber um computador pela primeira colocação é uma realização pessoal, mas é mais que isso; “é a certeza de que a juventude deve ser inteligente para agir, livre para amar, regrada para fazer sempre o bem ao próximo”. Ela se coloca pelo seu sonho de poder viver em um lugar melhor, “sem drogas, sem prostituição, sem violência, sem medo (…) em uma Independência que todos sintam orgulho de nela morar”. Foi aplaudida várias vezes e concluiu anunciando que vai continuar participando do “Prêmio Flávio Paiva”, mesmo que o regulamento não permita a repetição de ganhadores.
Essa declaração de seguir participando, ainda que não possa voltar a ganhar foi uma das grandes revelações daquela noite, porque demonstra o quanto de energia criadora pulsa nas vontades dessa garotada que está aí disposta a se pronunciar em favor da construção de novas representações. Ao escutar a voz de Cecília, comecei a refletir o quanto uma atividade como essa nos oferece de oportunidade para apreciar os participantes, não como melhores ou piores, mas apenas pelo que são: nós. E somos como as palavras que entram nos textos individualmente, mas passam a ter muito mais sentido e importância quando se relacionam com as outras.
O tema “A mais bela história que já ouvi” agregou situações de paixão e as três primeiras colocadas convergiram nesse sentido: Cecília Pimentel (1ª) contou do amor dos seus avós; Mayana Menezes Lima (2ª) abordou os segredos de um lugar, São Joaquim, que era dominado por um coronel malvado, mas hoje é um assentamento com mais de 70 famílias, recorrendo à memória do seu avô: “Sempre que me contava / me enchia de emoção / voltava a ser um jovem / cheio de recordação”; e Caroline Carvalho Barbosa (3ª) narrou a bravura de um rapaz de poucas posses que, apaixonado por uma linda mulher, filha de um rico coronel, precisou atravessar o rio São Francisco com ela na garupa de um cavalo, para poder receber o consentimento do pai da moça.
Mayana chorou ao falar do “Berço de amor e de sonhos / Mundo onde pude crescer” e ao agradecer pela família que tem. Família que estava presente, como a de Cecília e de outros participantes. Fiquei muito feliz também por constatar a quantidade de professoras e de professores presentes. São fatos simples assim que alimentam as minhas esperanças, que reforçam em mim o sentimento de quem nem tudo está perdido. E digo isso também porque a meu lado estava o Sr. Joaquim Augusto, que fez a minha certidão de nascimento e de casamento, e as minhas professoras Maria do Carmo, Ozanira e Cacilda Sales. De corpo presente, faltou só o padre Jacques Moura, que me batizou.
Terminado o evento, ganhei o livro “Carisma de um provinciano” de presente do “Seu” Salvador, poeta de 84 anos, que foi agricultor, alfaiate, comerciante, que tem o dom de achar água na caatinga e que só não gosta de contar história de onça porque fica com a impressão de que as pessoas podem achar que é mentira. Ao abrir aleatoriamente na página 33, o poema “Abstração” me disse que “Tem tempo que o tempo dá / Tem tempo que o tempo tira / Tem tempo que o tempo encolhe / Tem tempo que o tempo estira / Tem tempo que o tempo dá tempo / Que o próprio tempo se admira”. E sai mais uma vez agradecido por continuar sendo educado pelos conterrâneos que vieram antes e depois de mim.