A expressão do Egoísmo Social
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 23 de Agosto de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O medo da destituição social apavora. Acirra conflitos pelo viés do preconceito e da hostilidade. Esse tipo de receio faz parte dos momentos da intensa mobilidade social que estamos vivenciando no Brasil, fruto da agregação econômica de uma ampla massa de marginalizados. O problema pode ser entendido e tratado naturalmente pelos mecanismos democráticos. Mas, dentro da noção de perigo que suscita esse sentimento, tenho observado a preocupante revelação de Egoísmo Social em alguns segmentos da classe dominante brasileira. Algo que se expressa como uma solidariedade reversa, como uma negação do direito alheio, movida simplesmente por perversos caprichos exclusivistas.
Essa parcela mais obtusa dos privilegiados pelo modelo concentrador implantado há séculos no país demonstra o incômodo fantasmagórico de quem ouve um pidgin no qual as questões coletivas parecem arbitrariamente degringolar para soluções individuais. Reage como quem escuta repetidamente e sem querer a música “Indignação”, do baixista Paulo Lepetit: “Agora a cozinha quer falar / Tira a bunda daí / Quer tomar café / Vai tomar na cozinha” (cd Música Preta e Branca, Elo Music). E fica no ar um indesejável estado de pânico moral, sustentado por estereótipos de intolerâncias.
O que esse grupo de pessoas vê como dissolução social não passa na realidade dos efeitos do redesenho da dignidade na vida nacional, que se move em favor de uma complexa rearrumação de lugar ao sol. Isso não significa dizer que estamos entregues à própria sorte. Precisando apenas largar o espelho e procurar entender o que está se passando na cabeça uns dos outros para definirmos o que queremos juntos. Quando vejo, por exemplo, o incômodo de muitas pessoas contrárias à possibilidade da polícia militar do Ceará de utilizar caminhonetas Hilux em seu trabalho de segurança pública, fico pensando o quanto há de racionalismo e de Egoísmo Social nesse tipo de reação. Afinal, antes dos aspectos funcionais, esses veículos simbolizam uma questão de status, que para muitos é difícil de ser compartilhada com servidores públicos da segurança.
Na encruzilhada que leva à dissolução ou à rearrumação social, a seta do conservadorismo é sem dúvida a que indica o pior dos destinos. É para esse rumo que apontam movimentos como o “Cansei”, fabricado por promotores de eventos e publicitários paulistas, com o envolvimento de empresários e de advogados da seccional paulista da OAB. A coisa é tão artificial que, no lugar de uma legítima manifestação política, o “Cansei” reverbera como um basta incisivo, pronunciado por alguém superior, que já tolerou demais o furdunço da plebe do Bolsa Família. A população escuta o “cansei”, como um grito de “pra senzala, já!”. O que ressoa no simulacro dessa ação é o sentimento de total ausência de respeito aos interesses do bem-estar coletivo.
O uso do desespero paranóico como ferramenta mobilizadora dos que, ao quererem tudo só para si, sentem a emoção momentânea da incipiente perda de benesses, conduz os envolvidos a impensadamente colocarem em risco a própria convivência democrática que os protege, dentro da racionalidade moderna. A consistência arregimentadora do “Cansei” é tão superficial que o simples aparecimento do “Cansamos”, como resposta dos movimentos populares, baseada em argumentos do tipo “cansamos do trabalho escravo”, abalou significativamente o que poderia existir de convicção cidadã nessa imitação grosseira de movimentação social espontânea.
A campanha “Eu também vou vaiar Lula”, articulada com distribuição de camisetas e adesivos para carros, lembrou-me a passeata dos “bacanas arrogantes” e das “dondocas enfadadas” na Venezuela, na movimentação apoiada pelos Estados Unidos para derrubar o presidente Hugo Chávez em 2002. Deu no que deu. As mentiras não pegaram. A população não aceitou as notícias e a realidade venceu a ficção. Está tudo gravado com muita clareza nos 74 minutos do documentário irlandês “A revolução não será televisionada” (Kim Bartley e Donnacha O’Briain).
Não é que segmentos das classes dominantes não possam se manifestar, protestar, fazer passeatas. Óbvio que podem. A democracia empírica brasileira é mais sofisticada do que muitos pensam. O problema do “Cansei” está na forma velada com que os seus organizadores misturam alhos da ordem pública com bugalhos das benesses da desigualdade. Por isso, esteja o que estiver escrito em suas peças publicitárias a população lerá sempre como “mentira”. É uma questão de falta de credibilidade na voz, no texto, no propósito. Quando os ruralistas fazem reivindicações com passeatas de tratores rumo a Brasília, ninguém acha estranho. Pelo contrário, concordando ou não com a razão de tais atos políticos, todo mundo os encara como legítima expressão pública, pertinente aos conflitos democráticos.
A situação do “Cansei” é difícil por se tratar de uma contradição entre o seu discurso moralizador e a sua inspiração nas crenças e ambições de uma estrutura econômica de caráter monopolista, que no fundo no fundo é a grande responsável pelo descompasso institucional brasileiro. Nunca é demais lembrar que, embora ainda com apenas cerca de 10% da população apropriada de 80% da renda nacional, o Brasil que não está sendo televisionado tem produzido uma relevante transformação econômica. Mesmo com todas as subjetividades que escondem muitas vezes a quantas anda a redução das desigualdades, essa transformação sinaliza para um futuro de estabilidade. Digo isso porque acredito que se conseguirmos continuar melhorando as condições das classes mais desfavorecidas e desenvolvendo uma classe média forte, sairemos bem das turbulências atuais.
O Brasil não é mais o mesmo e no novo país que se forja na nossa fabulosa democracia empírica o espaço para o Egoísmo Social tenderá a ceder terreno para o crescimento da economia solidária, do consumo consciente e quem sabe do mercado justo. Os sinais de que a sociedade não está literalmente para brincadeira têm aparecido em manifestações como as que aconteceram na semana passada em Teresina, quando os piauienses iniciaram uma campanha de boicote aos produtos da Phillips, com a quebra em praça pública de aparelhos de som, televisão e DVDs da marca holandesa, em repúdio à declaração do presidente da transnacional, Paulo Zottolo, de que “se o Piauí deixar de existir ninguém vai ficar chateado”.
Em suas desculpas, Zottolo, que é um dos patrocinadores do “Cansei” tentou escapar do lapso de sua prepotência dizendo que a Phillips tem um trabalho social no Piauí. Entre o deboche explícito e a declaração abstrata de “responsabilidade social” não precisa dizer que as pessoas não confundirem verborragia com comunicação. O marketing político do “Cansei”, forjado em cima da tragédia do avião da TAM, ocorrida no aeroporto de Congonhas em julho passado, deixou desconfiado até o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, que não permitiu a utilização da catedral da Sé para a solenidade de “comemoração” de um mês do fatídico acontecimento. Diante de tanto Egoísmo Social, resolvi dar mais ouvidos ao cd “Que belo e estranho dia para ter alegria” (Universal), da cantora potiguar-carioca Roberta Sá. A canção de Lula Queiroga, que dá nome ao disco, fala que com a falência das vozes dominantes “vai ter tempo pra gente ficar junto”. E não é pedir muito, não.