A família e os limites da escola
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 31 de Março de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Mês de março de 2011. Em uma grande escola de Fortaleza os estudantes de nove e dez anos fazem prova de matemática, com nove páginas, uma predominância de referências de consumo em seus enunciados e até perguntas que não são de matemática. O conteúdo gira em torno da chegada de portais de compras coletivas ao mercado “pet” (animais de estimação), das datas de vencimento do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e a ilustração de um termômetro, com base na qual o estudante deve dizer a temperatura indicada e se essa temperatura caracteriza ou não a existência de febre.
No mesmo mês de março de 2011. Em uma escola de porte médio de Fortaleza um grupo de pais de crianças também na faixa de nove e dez anos escuta o vendedor de uma agência de viagens que explica a programação de uma excursão “pedagógica” para a cidade de Natal. Concluída a explanação, um pai comenta que sentiu falta da inclusão do “maior cajueiro do mundo” no roteiro. O representante da agência esclarece que essa famosa atração potiguar está fora porque é “programa de índio”. Diante de algumas reações esboçadas na platéia, ele se defende dizendo que esse cajueiro não passa de uma “lenda urbana”.
Tão desconcertante quando o ensino que pressiona a infância ao enquadramento mental nos parâmetros de consumo e na falta de propriedade conceitual das disciplinas é ouvir que uma “lenda urbana”, inspirada em uma árvore frutífera originária da região, presente em sua culinária mesmo antes do início da colonização e com destacada relevância econômica e social não cabe no roteiro de uma “viagem pedagógica”. Ao passo que uma balada, igual em qualquer lugar, é exibida como adequada para meninas e meninos de nove e dez anos, conforme explica o programa: “Curtiremos a valer com toda a turma ao som das baladas do momento e sob o comando de um DJ super animado”.
Esses dois exemplos refletem três disfunções educacionais que merecem aprofundamento nas discussões sobre o compromisso da escola com relação à família, independente do tamanho do estabelecimento de ensino e em qualquer que seja a configuração familiar, enquanto núcleo de aproximação pela afetividade: a) educação voltada para a indução ao consumismo (redução do horizonte social? / preparação para o mercado de baladas?); b) educação sem clareza de conceitos (saber a temperatura da febre é matemática ou ciências? / viagem pedagógica ou doutrina de consumo?); e c) educação para a consolidação da precocidade em nome da autonomia (extinção do período de latência? / pressão para a antecipação da puberdade?)
O contrassenso delineado nessas interrogações parece oculto em uma tendência de cumplicidade desenvolvida em pontos de interesses comuns entre educadores e vendedores, com a anuência de mães, pais e cuidadores. “Isso é um erro motivado pelo egoísmo dos pais que, no fundo, querem ver-se livres do cuidado responsável dos filhos para viver suas vidas” (Quiroga, OESP, 12/10/2010). O problema é grave e deixa transparecer o transtorno resultante de uma certa incapacidade das famílias de estabelecerem os limites da escola na educação.
Por conta do descontentamento de muitas famílias com a qualidade do ensino, com as apostilas caras demais, com a anuência das escolas a comportamentos voltados para o consumismo e para a idolatria da violência, notam-se alguns focos de crescente insatisfação ainda velados pelo medo social. Mesmo assim, algumas famílias têm resolvido protestar, tirando os filhos da escola para educar em casa, contrariando a legislação brasileira, que determina a matrícula em escolas de ensino regular. Já existe até uma associação de famílias dispostas a lutar pela educação domiciliar, que é a Aliança Nacional de Proteção à Liberdade de Instruir e Aprender (Anplia).
Dá realmente uma agonia pensar em uma educação focada para tornar a meninada compatível apenas com a lógica econômica, como se não houvesse outras referências e razões importantes na vida em sociedade. Quando uma escola programa a ida de crianças para uma boate, ela está referendando institucionalmente a balada e tudo o que isso pode significar como redução do período de latência e preparação para o consumo de álcool e drogas, mesmo que na “balada infantil” nada disso seja vendido. É o conceito que está em pauta nessas circunstâncias em que a escola se submete aos interesses comerciais, quando o senso comum diz que os valores éticos são transmitidos pelo exemplo.
Pois bem, nessa “brincadeira” é que vem aumentando o sucesso das “galletitas mágicas”, os biscoitos, brownies e cookies de maconha vendidos nas ruas em áreas de baladas portenhas. Com a entrada mais cedo das crianças nesse perfil de consumidor é provável que esse novo tipo de “guloseima” passe a ser vendido também nas calçadas escolares. Ao assumir decisões que cabem à família em casos como os das baladas, a escola acaba confundindo a diversão infantil (mais associada à linguagem do brincar) com a oferta de lazer juvenil (que é uma antecipação da puberdade), conferindo à criança uma autoridade inadequada à sua maturidade.
A usurpação do período de latência por meio da indução ao consumismo prejudica o equilíbrio individual, o senso de equidade social e causa ruídos sensíveis nas famílias, para as quais resta a saia justa de vetar a ida dos filhos para a balada, alimentando a desconfiança na orientação da família voltada para as instituições de ensino, ou a de deixar a criança ir, correndo o risco de validar um tipo de atividade que ultrapassa as fronteiras do papel escolar. A saída mais razoável tende a ser a de vez por outra consentir com a ida da meninada a esse tipo de evento, mas ressalvando o entendimento de que é uma coisa do grupo de colegas, isentando a escola para não ter que desautorizá-la.
Da mesma forma que existem famílias lutando judicialmente para educar os filhos em casa, existem aquelas que se sentem acobertadas pela “verdade moral” que está por trás da presença da escola com crianças nas boates freqüentadas pelas “galeras”, que estão reproduzindo mais e mais o conceito de “balada” nos aniversários infantis. Alguns têm até batida de limão feita com todo o ritual de uma caipirinha, mas com a desculpa de não ter álcool. O chamado “som do momento” é o que a indústria da mesmice põe à venda na estação e isso nem sempre é do interesse de todas as crianças. Atualmente, pode ser a brasileira Manu Gavassi, revelada ao público infantojuvenil com o clipe “Garoto Errado”, veiculado no YouTube, ou pode ser o estadunidense Justin Bieber que, com marketing mais robusto, tem até um filme (Never Say Never) contando a sua “trajetória”.
Tenho a impressão de que muitas dessas famílias não estão bem avisadas do que é empurrar os filhos a uma educação sul-coreana, capaz de produzir indivíduos altamente autônomos, “inteligentes” e competitivos, mas que amarga uma estatística de quarenta casos de suicídios diários, numa proporção de trinta vítimas para cada cem mil habitantes. Que bom nível de vida será esse? “Em nome da autonomia, muitas crianças são abandonadas à mercê de seus parcos recursos de autocontrole” (Rosely Sayão, FSP, Equilíbrio, 9/4/2009). O desafio é não cair nessa roubada. Entretanto, para que a escola tome pé da sua parte no processo educativo, cabe à família explicitar as fronteiras dessa relação, por meio de um nexo afetivo acolhedor, impossível de ser estabelecido apenas pelo vínculo entre fornecedor e cliente.