Havia um agito na cidade, mas na minha casa tudo permanecia calmo. Minha mãe tinha me chamado para almoçar e eu tinha dito “vou já” porque estava finalizando uma brincadeira na sala. Meu pai já estava sentado à mesa do alpendre interno onde normalmente fazíamos as refeições.
Escutei uma batida na porta. Levantei-me para ver quem era e vi que havia muita gente na calçada e na rua. Uma pessoa me perguntou:
– Seu Toinzinho está aí?
– Sim – respondi um tanto reticente.
– Pois diga a ele que o governador está aqui e quer falar com ele.
Quando ouvi a palavra “governador” corri logo para avisar ao meu pai. Mas ele achando improvável aquela visita, pensou que fosse brincadeira minha e disse:
– Diga a ele que pode entrar.
Voltei na mesma pisada e repeti:
– Meu pai disse que o governador pode entrar.
E lá se foi o governador César Cals (1926 – 1991), a primeira-dama Marieta (1926 – 2013) e toda a comitiva corredor adentro.
Quando se deu conta da situação, meu pai ficou meio sem jeito e saiu cobrindo as panelas e pedindo à minha mãe para fazer o mesmo. Ainda deu tempo de colocar um chapéu e de calçar as alpercatas. O governador informou que gostaria de conhecer o raro pé de favela sem espinhos que havia no nosso quintal (e que permanece até hoje).
Entre a parte onde cultivávamos canteiros de hortaliças e um pequeno pomar com mamão, seriguela, romã, laranja e limão, havia um pequeno portão e, em seguida, um muro cuja passagem, mesmo aberta, exigia atenção especial por ter batentes de pedras irregulares e o teto muito baixo.
Quando deu o passo sobre a pedra mais alta, a dona Marieta bateu com a cabeça na parte de cima do portal. Foi um deus nos acuda. Ela tinha um cabelão bem arrumado, cheio de laquê, e tudo ficou tomado de sujeira. Os óculos escuros, do tipo jakie-o, caíram no chão.
Constatado que estava tudo bem, técnicos agrícolas passaram a explicar ao governador a relevância da multiplicação daquela árvore para a convivência com a seca. Estávamos na primeira metade da década de 1970 e o Ceará atravessava um longo período de estiagem agressiva.
Tive receio de que eles fossem arrancar e levar o faveleiro com eles. Peguei a minha baladeira e fiquei preparado para o pior. Meu pai percebeu a apreensão que tomava conta de mim e me tranquilizou dizendo que nada de mau aconteceria ao pé de favela.
Descobri posteriormente que os faveleiros, mesmo cheios de espinhos dolorosos, deram grande contribuição à sustentação da comunidade de Canudos, destruída por tropas federais no massacre que matou Antônio Conselheiro (1830 – 1897). O leite e a carne que alimentava aquele arraial decorria da criação de cabras, alimentadas com forragem de pé de favela.
A expressão favela passou a ser utilizada para designar os aglomerados urbanos periféricos após a chegada ao Rio de Janeiro dos sobreviventes da destruição de Canudos. Foram chamados de favelados todos aqueles que ocuparam o Morro da Providência, posteriormente apelidado de Morro da Favela.
Mas, voltando ao quintal lá de casa, os pesquisadores falaram do potencial do faveleiro (jatropha phyllacantha) como fonte de proteína, carboidrato, cálcio, fósforo e ferro em terras áridas e pedregosas. Depois que eles foram embora sentamos à mesa e meu pai falou:
– Meu filho, por que você não me disse que era mesmo o governador que estava lá fora?
– Mas foi o que eu disse.
E começamos a rir da comédia.