A festa como intervenção urbana
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 05 de Janeiro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Qualquer exame mais atento que fizermos sobre o nosso conjunto de fontes históricas nos levará facilmente a perceber que de modo tradicional os poderes públicos sempre procuraram refrear as “perigosas” e “incivilizadas” manifestações festivas populares, organizando folguedos e criando eventos que evitassem a “depreciação” da ordem social por eles estabelecida.
A observação desse recorte do comportamento das elites econômicas, religiosas e políticas revela que o patrocínio das festas populares guarda originalmente características de válvula de escape autorizadas. Às pessoas submetidas a situações de desigualdade e de opressão era concedida a prerrogativa do divertimento esporádico para, com isso, seguir agüentando as imposições da apartação.
A qualificação do ócio como crime de vadiagem, clarificada por Francisco Pinheiro em seu livro Notas sobre a Formação Social do Ceará – 1680 a 1820 (Fundação Ana Lima, 2008) como uma estratégia de dominação colonial começa a ganhar novas conotações com o amadurecimento da festa do reveillon há quatro anos promovida pela Prefeitura de Fortaleza no aterro da Praia de Iracema.
O fantasma da desordem, da violência, da vadiagem e da vagabundagem, que servia para inibir o uso dos espaços públicos pela população, largando-o ao livre arbítrio do vandalismo oficial mancomunado com a especulação imobiliária, cede lugar à aspiração de convivência pacífica e à alteração do sentido de licença para o de direito aos grandes espetáculos, como uma condição adicional à qualidade de vida nos centros urbanos.
“Quanto tempo tenho / Pra matar essa saudade (…) Respirar o amor / Aspirando liberdade (…) Tenho a vida doida (…) Vivo de amor profundo (…) Perdoa meu amor / Esse nobre vagabundo”. No momento em que cantou a música Nobre Vagabundo (Márcio Mello) Daniela Mercury chamou a atenção do público para o aspecto político da discriminação da alegria. E incitou a platéia a se libertar da perversidade desse estigma.
O reveillon da Praia de Iracema cumpre o papel de produzir uma inflexão na história social de Fortaleza, considerando sua contribuição no reconhecimento do lugar das pessoas no mundo urbano. E faz isso, não como acessório, mas como alimento de primeira necessidade, como elemento de dignificação e de modificação da qualidade de vida. Por seu caráter de ressemantização do uso do ambiente social construído essa festa ganha a importância de tema urbanístico e não apenas de evento cultural e turístico.
O fato de gerar desejo de cidadania faz com que o subsídio cultural e afetivo dessa medida de intervenção urbana de cunho integrador realce em sua grandeza um forte viés de política pública de educação social. Esse talvez seja o principal mérito da prefeita Luizianne Lins, se levarmos em conta o histórico de Fortaleza (quase sempre incompreendido em sua singularidade, inspirada no fluxo do interior para o litoral) e a falta de hábito do uso das áreas destinadas à coletividade, que pouco recomendavam a construção de uma festa desse nível de sociabilidade.
O Reveillon da Paz, como tem sido chamado, rompe com um jejum de assimetria social imposto pela ignorância separatista e com os indicadores do gráfico da violência que acompanha os passos da nossa geografia socioeconômica. Estar junto com o mesmo propósito aumenta o poder de congregação. Ao invés de servir de freio às manifestações populares ele serve de plataforma cidadã, por ter uma causa comum projetada na idéia de grande comunidade.
Dentro os muitos alcances produzidos por essa efetiva ação de intervenção urbana de uso dos espaços públicos, a festa do reveillon de Fortaleza é uma medida política fora das fórmulas conservadoras de emancipação social, capaz de estimular um estado de compreensão de que temos uma cidade na qual podemos nos encontrar e receber de braços abertos os que nos visitam, o que lhe atribui o caráter de fator social e de desenvolvimento econômico.
Embora englobe a questão econômica, entre tantas outras, eu diria que a meta do reveillon não é a superação do número de pessoas presentes ano a ano, até porque esse tipo de aferição é sempre duvidoso, mas a qualidade da convivência e sua repercussão em outras medidas que poderão beneficiar o cotidiano da cidade. Desses reflexos, sim, derivará a qualidade da educação social, que influenciará na segurança, na cultura e no turismo.
A festa do reveillon que começa a se tradicionalizar é um dos motores da reconstrução de Fortaleza, que por tantos anos ficou a mercê dos edificadores de muros de alvenaria e dos levantadores de barreiras simbólicas à humanização da cidade. Quem esteve na Praia de Iracema e foi convidado por Gilberto Gil a “onde quer que você vá / que você me carregue” (Vamos Fugir), pôde também brincar com os balões vermelhos que pulsaram sobre a multidão. Todos queriam tocá-los, impulsioná-los, como representação de presença ativa, de disposição para fazer a festa.
As celebrações familiares e de amizade realizadas pelos grupos de pessoas que levaram mesas, cadeiras, comidas e abraços para a areia da praia, fizeram ao lado do agito dos shows uma noite serena e convidativa, sob os cuidados de segurança da Guarda Municipal e da Polícia Estadual. O apresentador Dílson Pinheiro em seu agradável espírito de cearensidade chegou a dizer que em uma festa assim muita gente acaba encontrando alguém que nunca tinha visto e tendo saudade do encontro não ter acontecido antes.
O que considero de mais sublime e mais objetivo nesse evento de estímulo ao uso comum do espaço público é a sua capacidade de vincular a qualidade de convivência entre o efêmero e o permanente em uma cidade na qual as pessoas foram acostumadas a temer a rua, a recear o uso das áreas coletivas e a negar o desejo de se encontrar.
O reveillon de Fortaleza é, portanto, uma experiência que nutre o conteúdo democrático pela criação de referenciais do que é essencial e do que é periférico na vida em sociedade. A democracia só se viabiliza quando as pessoas a compreendem pela oportunidade de se sentirem merecedoras do usufruto das riquezas que a cidade pode lhes oferecer. Saberemos se essa semente de convivência e respeito social vingará quando, por exemplo, espaços como o da avenida beira-mar forem fechados aos finais de semana e feriados para as pessoas passearem, flanarem e andarem de bicicleta…