A filarmônica cabra da peste
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 25 de Junho de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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O carro para em frente a uma banca de revistas e, projetando-se pelo vidro da porta, um homem calvo, de paletó, gesticula para o jornaleiro perguntando em voz alta se ainda tem a revista “Quem”, com a Cláudia Raia. As pessoas que passam na calçada podem até não entender a cena, mas o que se repetia banca após banca era uma busca do maestro Gladson Carvalho, 47 anos, por uma revista que tinha saído com uma matéria do Centro Cultural Banco do Nordeste (edição de 29/5/2009), na qual foi publicada com destaque uma foto da Orquestra Filarmônica do Ceará.

Perguntado espirituosamente por sua companheira, a soprano Rafaele Cavalcante, se apenas fazendo referência ao nome da atriz exposta na capa da revista ele não corria o risco de ter a sua intenção confundida pelo público, o maestro é pragmático na resposta e diz que o mais importante naquela comunicação é o jornaleiro saber rapidamente o que ele quer. Este caso, ocorrido na semana passada, traduz bem o espírito que rege a forma de ser de Gladson Carvalho e serve para ilustrar o quanto o fato de ele não ligar para aparências implica em descompassos de rejeição e aceitação ao seu trabalho.

Na tentativa de ser mais bem compreendido, o maestro acaba de lançar o livro “Uma vida. Um destino” (Realce, 2009), no qual conta aberta e realisticamente o que tem acontecido com ele e com a orquestra que fundou e dirige há uma década. Trata-se de uma jornada intensa e singular, percorrida por mundos improváveis e plenos de dissociações de expectativas. O livro tem uma narrativa dramática, mas não é ficção. É o típico enredo visceral de quem constrói fora dos trilhos. Na contracapa, ele avisa: “A história que vou contar para vocês é verdadeira, é a história de crianças e jovens dos bairros da chamada periferia de Fortaleza”.

O que parece desvio e catabil no relato do maestro é a constante alteração de rota que ele vive fazendo para tentar obstinadamente chegar sempre ao mesmo lugar, ao Ceará. Vai para a Paraíba e volta, para Sergipe e volta, vai e vem, montando orquestras de cordas, de violões, disso e daquilo, contudo não consegue se livrar do fervilhão que o move a achar que o Ceará merece ter uma Orquestra Filarmônica. Ele acredita em si e nas dezenas de jovens que estão com ele nessa empreitada de fazer da música profissão e meio de integração cultural e social. E é essa teimosia que atrai o leitor a dar escala ao personagem e sua grita desesperada.

A Orquestra Filarmônica do Ceará (OFCE) aborda estilos diferentes e não é nada certinha em seu ecletismo. Se fosse, não seria uma orquestra cearense. O maestro é performático. Se a música tem origem espanhola ele rege dançando com castanholas nas mãos, se nordestina, agita as batutas com chapéu de couro. Aliás, ele conta no livro que aprendeu com o maestro Koellheuter a ouvir e a repetir que só existem dois tipos de música: a boa e a ruim. Nesse diapasão, ele vai de Mozart a Luiz Gonzaga e de Nonato Luiz a Alberto Nepomuceno.

Maestro nervoso, Gladson vive como um passarinho que pousa nos fios e canta olhando assustado para todos os lados, esperando pedradas. Sua vida é uma vida de emoções fortes, de dor e revolta, na luta para equalizar as ignorâncias que atravancam a evolução de uma orquestra que eu chamo carinhosamente de “popudita”, por sua mescla de popular e erudito. De um lado, a OFCE sofre do desdém da parcela mais “eruditizada”, que gostaria de ter uma orquestra nos padrões europeus, e, de outro, a indiferença da parcela mais “populitizada”, que não acha nada, simplesmente porque não sabe para que serve mesmo uma orquestra.

A interioridade da OFCE é a cearensidade. Ela é a orquestra ideal para nos mostrarmos para nós mesmos e para quem nos visita. É uma orquestra divertida, irreverente, sem preconceitos e constituída basicamente por músicos egressos da Barra do Ceará, do Pirambu, do Siqueira, Mucuripe, Bom Jardim, Conjunto Ceará, Morro do Teixeira, enfim, de bairros da periferia de Fortaleza. A formação atual conta também com um alemão, um cubano e um belga. É, sem dúvida, uma proposta que fica distante dos nossos deploráveis desejos de imitação e o jeitão de filarmônica cabra da peste ofusca mais ainda a nossa cegueira paradigmática.

Mas o maestro é duro na queda. Cai atirando. E se levanta para contar. No livro ele diz que certa vez chegou sem ser convidado a uma solenidade que reunia no Centro Dragão do Mar vários secretários de Cultura do Nordeste e viu e ouviu a então Secretária da Cultura dizer que infelizmente o Ceará além de não ter uma Orquestra, nossos músicos não tinham nível para pertencer a uma.

Ele relata que apresentou imediatamente ao público uma cópia do estatuto e dois cds da OFCE, gravados com apoio da Fundação de Cultura de Fortaleza, à época dirigida pelo poeta Barros Pinho e desabafou: “se realmente a nossa Orquestra não existe, eu, o Dr. José Maria Barros Pinho e esse dois cds somos mera ilusão, também não existem, e, no entanto, estamos aqui para quem quiser ver”. Uma das coisas que muito chama a minha atenção em Gladson é que, por ser emotivo compulsivo, ele explode, ele revela, ele chuta o pau da barraca, mas não guarda rancor, não é raivoso, não é odiento nem tem lamúrias.

Os arautos da inclusão social estão sempre dispostos a incluir o outro no que eles querem e não no que o outro deseja. Não é fácil desatar esse falso nó. Na linha bamba da sobrevivência, no exercício da vida radical, ele às vezes mistura as coisas e se deixa confundir com pregação caritativa e acaba não sendo entendido em seu propósito maior. Em “Uma vida. Um destino”, o maestro argumenta que, mesmo passando por todas as adversidades, as crianças e os adolescentes que se envolvem com música são positivamente diferentes: “raramente se vê nos jornais, no rádio ou na televisão, notícia de que um violoncelista, um fagotista, um violinista, matou, ou roubou alguém”.

Kleber, o trompista, reforça o que chama de “sã loucura” do maestro, dizendo que na aventura da orquestra “até as dificuldades são divertidas” e que, por isso, sente-se feliz, independente de cachê e de salário, o que o coloca no eixo do dilema entre a sobrevivência e o prazer de fazer o que gosta. Elves, que é violinista, complementa o estado de satisfação e de conquista dos integrantes da OFCE: “Aos 12 anos capinava e juntava castanha de caju, hoje, com 18 anos, sou violinista e arquivista da Orquestra e estou cursando licenciatura em educação musical na UFC”.

A própria trajetória de Gladson inspira essa busca. Filho de operário de uma fábrica de sabão, ele começou estudando no Sesi e se revelou na banda do extinto colégio Júlia Jorge onde, com 12 anos estudava com bolsa recebida por sua participação na banda. Tempos depois, voltou à mesma escola como maestro e, desta vez, garantindo a bolsa de estudos da filha Musa Thaís. E foi a partir da banda do Júlia Jorge, com o entusiasmo cenecista dos professores Lúcio Méllo, pai e filho, que nasceu a Orquestra Filarmônica do Ceará.

A OFCE é uma orquestra arejada e irreverente, com atuação longe da pretensão de dominar a música. Está mais próxima do existir com a música, nem que para isso tenha que enfrentar os discursos autorizados e a precarização de suas produções. Identificada com a priorização dos aspectos sensoriais e emocionais das pessoas e não necessariamente dos instrumentos e da técnica, a Orquestra Filarmônica do Ceará é protagonista sincera do Ceará insurgente.