Nas ruas de Fortaleza, pelos cantos mais invisíveis da cidade, vagavam até pouco tempo dois espíritos solitários e acabrunhados: o da índia Iracema, de José de Alencar (1829 – 1877), que morreu de tristeza ao ser abandonada pelo colonizador que levou seu filho para o além-mar, e o do bode Ioiô, retirante que virou celebridade na capital, mas entrou para a eternidade empalhado como peça de museu.
Os dias de morte dos dois estavam insuportáveis, até que, em 2017, ambos foram reanimados por Daniel Groove e Nayra Costa, artistas queridos e de grande valor da cena musical cearense. O que eles fizeram? Deram a oportunidade de Iracema e Ioiô entrarem em estado de procriação, nascendo desse cruzamento legendário o bloco carnavalesco Iracema Bode Beat.
Iracema voltou à animação das festas e rituais de sua taba e Ioiô retomou os ares lépidos da boemia que o consagrou, acompanhados por outras criaturas que transitam pelo real e pelo imaginário fortalezense: a Gata de Fogo, a Gata do Brilho, o poeta marginal Mário Gomes, Ioiô em pessoa e o próprio Bode Beat, que desfila faceiro e fagueiro integrando foliões.
Fui ao encontro desses seres fantásticos no sábado passado (11), em um rolê pré-carnavalesco da feirinha Auê, na Praça das Flores. Nayra Costa, Daniel Groove, Bode Band e os seres performáticos do bloco mais uma vez mostraram que são rochedo: gente de todas as caras, corpos, cores e idades sacodiam o esqueleto como bodes, cabras e cabritos imersos em suas próprias visões de diversão.
A folia dos seres fantásticos do Bode Beat ganha ainda mais aspecto democrático e participativo com a presença do bode gigante carregado pelos próprios brincantes. Essa representação, composta por uma cabeça escultural e um corpo de tecido colorido, é sustentada por varas, utilizadas pelas pessoas que entram debaixo da armação para manipular seus movimentos.
Na dança de condução espontânea e sinuosa do Bode, embalada pelo som descontraído da festa, notam-se sinais de identificação cultural de uma gente que descende do bode, que migrou do sertão para o litoral e abriu os braços para acolher a quem mais chegar. O Bode Beat, com sua intensidade, fabulação, intuição, fluidez, amor e bom humor, tem a pegada da diversidade.
Interativo e transgressor, esse bloco vem deixando rastros pela cidade, revolvendo histórias e aprendendo a viver na estrada como o protagonista de “On the road”, de Jack Kerouak (1922 – 1969), ou se atirando na existência aos berros inconformistas da poética de “Uivo”, de Allen Ginsberg (1926 – 1997). Isso porque o pulso do som do Bode Beat não vem somente de beats instrumentais, mas também de batidas livres do coração.
O béééééééééé!, pronunciado em música, dança, teatro e performances do bloco Bode Beat transforma-se em desencaixe de padrões estéticos a partir do repertório transversal e atemporal conduzido por Groove e Nayra e pela Bode Band. Composições autorais cearenses, músicas de outras terras e temas e ressignificação de cantigas são entrelaçadas pelas perspectivas projetivas e nostálgicas da alegria.
Ao lado de outros blocos que vêm agitando os ciclos carnavalescos de Fortaleza, o Iracema Bode Beat tem lugar de destaque como atração na cidade. Tudo com inventividade, transpiração, atitude decolonial, senso de paz e espírito de cidadania orgânica. As relações das pessoas com a arte, entre si e com o lugar onde vivem passam pela formação de uma cultura de leveza e de acesso ao que é bom. E Bode Beat é bom que só!