Depois de ouvir a música Ô Povo Fêi (Falcão), na trilha sonora do kitsch Cine Holliúdy 2 (Halder Gomes), fiquei pensando sobre a importância dos corpos não convencionais para a vida em sociedade. Quando o desengonçado bregastar de Pereiro canta as “zureia grande”, os “zoi trocado”, as “canela fina”, o “bucho quebrado”, a “bunda mucha”, o “peito arriado”, a “cabeça grande” e o “pé quadrado” desse “povo fêi” e as pessoas cantam com ele e riem de si mesmas, não apenas se divertem como despertam das qualidades ocultas da invocatice com que enfrentam toda sorte de adversidades.
O fascínio pelas deformidades como exaltação a traços antitéticos vem da mais remota antiguidade, quando anões eram usados em contraponto grotesco à perfeição. O entretenimento lúdico nos palácios e a exposição a provocações preconceituosas estenderam-se pelos picadeiros dos circos, pelas feiras populares e chegaram aos palcos das redes sociais digitais. Assim como os artistas do passado tinham mais liberdade criativa, quando pintavam seres exóticos e feiíssimos do que a serenidade angelical, muitos caçadores de seguidores virtuais dos dias de hoje também apostam na atração da escatologia.
O tema da feiura despertou a atenção do pensador italiano Umberto Eco (1932 – 2016). Quando lançou o livro História da Feiura (Record, 2007), declarou que os corpos feios são mais interessantes do que os belos porque a feiura não tem limites. Em sua novela Feia de Rosto (José Olympio, 2009), o dramaturgo estadunidense Arthur Miller (1915 – 2005), filho de imigrantes judeus-poloneses, conta a história de uma anti-heroína, que tem bochechas retesadas, lábio superior alongado e testa enorme, embora com o corpo atraente, que só consegue ser feliz quando encontra um homem que não tem como começar a vê-la pelo rosto, simplesmente porque é cego.
A literatura está cheia de situações em que a humanidade é convidada a pensar sobre o assunto. No conto de fadas A Bela e a Fera, um príncipe enfeitiçado e infeliz necessita de amor sincero para voltar à forma humana; enquanto no romance O Corcunda de Notre-Dame, do escritor francês Victor Hugo (1802 – 1885), o sineiro, surdo, coxo e deformado Quasímodo é capaz de dar a vida em amor desinteressado pela cigana Esmeralda. No audiovisual, comediantes exploraram a própria feiura em todo o mundo. No Brasil, a atriz Zezé Macêdo (1916 – 1999), a Dona Bela – “Só pensa naquilo” – da Escolinha do Professor Raimundo, de Chico Anysio (1931 – 2012), é um dos ícones do êxito da feiura associada ao talento, transformando um rosto deformado por seguidas cirurgias plásticas em graça e drama.
A ambivalência entre a repulsa e a atração gerou bestiários com espantos da natureza. É famoso o caso da família Gonzales, das ilhas Canárias, que no século XVI foi retratada em galerias de castelos austríacos e franceses, e em livros de criaturas insólitas (“homem leão”, “menina com cara de cachorro”), por conta de uma anomalia genética que cobria seus corpos de pelos, inclusive o rosto. O desequilíbrio hormonal da mulher barbada sempre causou perplexidade pelo desencaixe cultural que provoca. Essa figura presente na história do circo vem sendo ressignificada pela drag performer cearense Mulher Barbada em espetáculos do coletivo As Travestidas, abrindo possibilidades às qualidades humanas tradicionalmente negadas pelos padrões culturais.