A guerra das drogas
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 01 de Fevereiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Diego era uma criança que costumava impressionar pela intimidade com a bola de futebol. Passou a adolescência colecionando dribles e gols. Fez da arte de jogar a sua profissão. Tornou-se o maior ídolo da torcida do Boca Juniors e da seleção argentina. Depois de Pelé e Garrincha, ninguém discute sua admirável referência de maior craque do futebol mundial. Diego Armando Maradona. Uma marca de genialidade, sucesso, encanto e celebridade. Não parece o mesmo que tem aparecido no noticiário internacional, tentando se esconder por trás de uma despenteada cabeleira alourada, com físico deformado por um inchaço assustador, voz arrastada e atitudes violentas de fera ferida.
Há um mês, quando foi salvo num balneário de Punta del Este (Uruguai), e levado para recuperação em um spa-clínica de Havana (Cuba), o médico Carlos Alvarez, que o socorreu, ficou conhecido pela expressão adotada em seguida pelo governo argentino para uma campanha de combate às drogas no país: “Maldita cocaína”. Parece fácil atribuir às drogas alguns dos graves problemas que envolvem estratégias geopolíticas, bons negócios, fuga da inutilidade social e ingenuidade suicida. O caso de Maradona é típico da fama em estado de descontrole emotivo e sensorial, causado pelo impasse entre o desmedido poder e capacidade de realização de prazeres e as limitações dos próprios desejos humanos.
A guerra das drogas tem muitas frentes de batalhas e muitas costas largas para proteção. O narcotráfico, ao lado da indústria bélica, é um dos negócios mais promissores do mundo e sempre integrou o conjunto de mecanismos utilizados pelas grandes potências nas suas artimanhas de domínio. Em nome do combate às drogas, muitas atrocidades foram e serão justificadas. Quando tentarmos impedir a biopirataria, que vem patenteando vergonhosamente a nossa riqueza amazônica, a região será solenemente invadida pelas forças de “defesa” do mundo, em nome do controle do tráfico de drogas, porque a Colômbia, nossa vizinha, é seu principal produtor. Enquanto isso, sequer paramos para pensar se o pobre camponês colombiano, que cultiva a coca em situação particularmente adversa, é tão infrator quanto os muitos milhões de norte-americanos consumidores de cocaína que necessitam de algo mais do que a razão material que os guia. Embora sendo o maior consumidor mundial de drogas, não se sabe de qualquer plano de auto-invasão dos Estados Unidos.
Quando a Inglaterra era a poderosa dona do mundo, situação parecida ocorreu com a Guerra do Ópio. Conta a história que, no Século XIX, uma empresa britânica (British East Indian Company) produzia ópio na Índia e vendia para a China. O ópio é uma droga narcótica, extraída da papoula, que causa rápida dependência física e psíquica. O império chinês, preocupado com o surto de viciados no país, proibiu o consumo da droga. Essa decisão provocou uma guerra de quase três anos, da qual a Inglaterra saiu vencedora e obrigou a China a liberar a importação e a pagar indenizações pelo ópio confiscado e destruído. De saldo, ainda sujeitou os chineses a cederem Hong Kong para a montagem de uma metrópole de defesa dos seus interesses no continente asiático. Hong Kong foi devolvida aos chineses neste final de Século XX, quando a China experimenta o dinamismo de mercado, sem abrir mão do controle do partido único.
Discussão de caráter geopolítico e comercial à parte, existe outro tema social atrelado ao universo das drogas que merece atenção. É o sentimento de inutilidade e indiferença que ataca as pessoas traiçoeiramente por dentro, impelindo-as na busca de motivos exóticos para viver. Com a simplificação da existência ao fato de quem pode ou não ter o status de consumidor, os seres transcendentais, que somos os humanos, fomos desocupados da nossa razão primordial. Os mais frágeis e menos ousados, normalmente procuram a saída pelo avesso, consumindo-se pelo desejo de consumir, inventando viagens à estação orbital da “mente expandida”, onde a felicidade psicodélica pode durar algumas horas, em troca da depressão permanente da volta a realidade. Isso sem falar dos casos em que a curiosidade ingênua pela aventura dribla a empáfia adolescente da auto-afirmação.
Alucinação, desinibição, choro, risada, empolgação, coisas brilhantemente sem nexo, sonhos fantásticos em um mundo de cores mais agressivas e perda da noção do tempo e de si mesmo, são alguns dos efeitos que embalam o ilusionismo das drogas. Ácidos, aspirinas, barbitúricos, heroína, crack, éter, maconha, cola de sapateiro, ópio, cocaína, anfetaminas, cogumelos, nicotina, álcool, inalantes, tranqüilizantes, entorpecentes sintetizados e plantas psicoativas, seja qual for o nome, classificação ou grau de dependência que provocam, o certo é que essas drogas têm dado igualdade de fuga e horrores a jovens e velhos, ricos e pobres, gênios e idiotas. Antes de morrer, em 1997, o ex-líder da banda Legião Urbana, Renato Russo, declarara que “infelizmente, a droga é um meio de confraternização social”.
Por toda essa complexidade, imagino que poucos conflitos parecem tão indissolúveis quanto a questão das drogas. Os pontos cruciais nunca são tocados pra valer. Alardear que as drogas são malditas, não reduz o esvaziamento de oportunidades, não alivia a ambição do domínio político, comercial e cultural, nem resolve problemas de afetividade. A riqueza que está sendo produzida pela fome é tão nociva quanto o empobrecimento da nossa relação com o belo. O conjunto de padrões vigente extrapola a capacidade dos seres humanos de suportarem diminuições animalescas, causando a introspecção que leva a atração auto-destrutiva das drogas. Somente assumindo valores cotidianos, capazes de contemplar a satisfação de viver sem ansiedades e temores, podemos gozar de um estado de consciência expandida sem aditivos ardilosos e sem estimulantes químicos.