Foi no vigésimo terceiro dia de um mês de maio que Atahualpa Yupanqui (1908 – 1992) partiu. Fez a viagem de volta deixando uma rica herança poética e musical regada na alma social pelo ardor pulsante do coração humano. Um patrimônio acumulado em tantas andanças por caminhos que o levaram a conhecer e a se reconhecer na cultura latino-americana profunda. Transformou tudo em canto de honra ao suor da labuta, aos sonhos e esperanças por uma vida menos desigual.
Galopando contra o vento da realidade onde é dura a condição das pessoas mais simples, o argentino Héctor Roberto Chavero, que adotou o nome inca de Atahualpa Yupanqui, afirma no livro El Payador Perseguido (Compañía General Fabril, Buenos Aires, 1972) se sentir ‘andando por onde vale o que é’. No longo poema que dá título à obra, Yupanqui fala da importância da música como companheira de luta, mas ressalta que ‘para ter o que colocar para fora é preciso ter alguma claridade interna’. Dizia que enquanto houvesse injustiça ele faria canções para sua terra.
No poema Hermanito del mundo, do mesmo livro, toma como mote versos inspirados no compartilhamento de pão e vinho entre irmãos de cultura para pedir emprestado um livro, no tempo em que oferece uma canção a quem quiser caminhar junto. Nas páginas seguintes, em El corazon y la copla, confessa que iria até o fim dos seus dias (como de fato ocorreu) cantando pela construção de um mundo melhor, mesmo ‘quando os sonhos se tornassem dúvidas e as flores virassem espinhos’.
Atahualpa Yupanqui cria que a música estava entre as coisas que podem salvar o mundo. Na milonga Los ejes de mi carreta, revela a vontade de não mais lubrificar os eixos da sua carroça existencial por considerar a imprescindibilidade do rangido. ‘Não necessito silêncio / Se não tenho em que pensar. Até teria, mas há tempos não penso mais’. Nas andanças que fez pelo continente colheu na plantação criativa de domínio público a canção de ninar Duerme Negrito, na qual alguém que cuida do filho de uma mulher que sai para trabalhar faz promessas à criança, pedindo-lhe que durma, pois sua mãe retornará trazendo comida e muitas coisas para ela.
Em outra milonga, Los Hermanos, conhecida no Brasil nas vozes de Elis Regina (1945 – 1982) e Mercedes Sosa (1935 – 2009), Yupanqui expressa o apego às gentes dos vales, das montanhas, da pampa e do mar, ‘cada qual com seus trabalhos, seus sonhos, esperanças e recordações’; pessoas que buscam alcançar horizontes, embora toda vez que se aproximam descubram que ele fica mais distante. Para o poeta, nada disso nos impede de seguirmos caminhando, perdendo-nos e voltando a nos encontrar, uma vez que ‘é olhando juntos para longe que nos reconhecemos’.
Isso vale para frente e para trás. Na baguala Camino del Indio, ele, que tinha mãe quéchua, evoca sua ancestralidade em uma composição feita para beijar as pedras dos caminhos incas ‘que juntam o vale com as estrelas’. Atahualpa Yupanqui sentia os sentimentos comuns de tantos irmãos, mas sentia também a linguagem das forças da natureza porque gostava de conversar com as folhas no meio da montanha e delas receber mensagens das raízes secretas. No poema Tiempo del hombre diz que ‘segue pelo mundo sem idade e sem destino, amando a luz, o rio, o silêncio e as estrelas. E florescendo em violões porque um dia também foi madeira’; madeira de tocar zamba, chacareira, milonga, vidala, baguala e canções.