A imaginação na prática
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.6
Quarta-feira, 25 de setembro de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE
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Depois de ler o livro “O lenço”, da ilustradora paulistana Patrícia Auerbach (Brinque-Book, São Paulo, 2013), com uma bela história contada sem qualquer palavra escrita, achei tudo tão especial que cheguei ao exagero de pensar que ele poderia até prescindir de um título, já que a capa com o desenho de um lenço em situação de cabaninha seria o suficiente para indicar o assunto tratado na obra. Afinal, toda menina e todo menino entenderia o significado daquele lenço, fixado por pegadores de varal no encosto de uma cadeira e por livros e sapatos no chão, cobrindo parte do corpo de uma criança, deixando à vista apenas parte da sua camisa, a calça e pés descalços em movimento.

O livro é todo assim, desde a atuação do lenço vermelho de bolinhas claras, na abertura e fechamento da obra, tal como uma cortina de palco de teatro. Em cenários de generosas páginas brancas, o lenço em cor interage com os traços pretos e sutis definidores da protagonista e dos elementos necessários à sua brincadeira no ambiente da casa. Quer fazendo as vezes de venda de cabra-cega, tranças de Rapunzel ou bandeira de alpinista na escalação da cama, o lenço interatua com a menina entre insinuações da presença da mãe, no limite do distanciamento indispensável para ela se sentir segura no exercício objetivo do imaginar.

Com leveza e graça, “O lenço” é um convite ao leitor infantil para uma brincadeira de pura imaginação, onde o acontecer dispensa funcionalidades. O trabalho surpreende por conseguir ser altamente profundo em sua simplicidade, o que possibilita a comunicação direta da imaginação do leitor com a imaginação da personagem, da autora e de seus filhos Rafael e Eduardo, a quem ela dedica o livro. Dá gosto entrar nessa história de brincadeira silenciosa, na qual o que define o ato é o movimento, a fala sem palavras, o diálogo sem discurso e a resposta sem pergunta.

A criança dá ao lenço a mesma atribuição que dá a si, deixando que ele mexa com ela do mesmo jeito que ela mexe com ele. Quando ela agita o lenço ele adquire movimentação própria e brinca com ela. Deste modo, ambos tornam-se extensão um do outro, numa ação interindividual de supra realidade e de cinestesia. A menina dá poderes de ação ao lenço e aceita seus gestos espontâneos para que brinquem juntos, e não apenas para poder brincar com ele. Ela não o coloca em seu benefício nem estabelece regras. Diga-se a propósito que o fato de não haver ninguém dando ordens é uma característica que merece destaque no livro de Patrícia Auerbach.

Merece destaque também a dimensão imaginativa aplicada à relação da menina com o lenço. Não dá para reduzir o fenômeno da imaginação experienciado no livro a práticas animistas, por meio das quais as crianças costumam atribuir desejos e vontades e até consciência a objetos. Em “O lenço”, o que está em desenho é a imaginação na sua expressão sutil, longe de intencionalidades e julgamentos racionais. Na brincadeira da criança com o lenço, o movimento é o verbo das leis naturais e da cultura da criança, no seu agir intuitivo, instintivo e lúdico. Nessa história nada é aparente. O real, o concreto, o consistente, está na concentração, na seriedade do brincar.

Enquanto brincam, a menina e o lenço são indissociáveis. Ela não confere a ele qualquer papel que não seja o de ser apenas um lenço. Isso resulta da sua força interna, do seu estado direcional enquanto ser humano em busca de ser pessoa. O jogo com o lenço manifesta essa relação construtiva de possibilidades do sentir e de ser alguém. Na brincadeira com o lenço há um conjunto de estratégias da vida imaginativa, que são táticas da mente, da alma e do coração, que acontecem fora da rotina e contribuem para estruturar o olhar do ser sobre si mesmo na expansão de horizontes.

A autora tem uma maneira mais somática do que psíquica de contar o que pode uma criança fazer com um lenço encontrado na gaveta da cômoda da mãe. Com delineamento maternal, ela espelha as figuras físicas da menina e do lenço como instrumentos de apoio à percepção fluida do que se move na forma e na intensidade de uma fantasia operada pelo corpo. A imaginação, quando nesse estado de diversão do sentir e não como um exercício concreto do pensamento, cria condições de alargamento da capacidade inventiva com o que se tem à mão.

Para o leitor infantil, entrar do jeito que for com a sua imaginação na conversa da imaginação em branco e preto da autora com a personagem e a peça de tecido vermelho é participar de uma brincadeira de indiferenciação entre o ser e o objeto, a menina e o lenço, na hora do brincar. Se na história desenhada pela Patrícia Auerbach não há palavras, frases e nem orações, é porque, nela, o verbo e o adjetivo estão brincando de substantivo. E substantivo no sentido de algo que, concreto ou abstrato, tem a sua própria substância, como expressão estética e afetiva associada ao valor da imaginação.