A incrível Serra das Confusões
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 04 de Agosto de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A consistência e a repercussão do trabalho que vem sendo desenvolvido pela arqueóloga Niède Guidon na Serra da Capivara há quarenta anos, no sudeste do Piauí, inspiraram a criação em 1998, do Parque Nacional da Serra das Confusões. A reserva ainda não está oficialmente aberta a visitações – agora é que estão sendo construídos os controles de entrada – mas é possível chegar a esse intrigante lugar com a ajudar de pessoas das cidades próximas, que conhecem suas trilhas.
Estive lá com a minha família, no mês de julho passado, e ficamos um dia inteiro nas Confusões, em companhia do Sr. Carlinhos, um tipo guardião do parque que trabalha para o Ibama em Caracol. Em sua caminhoneta 4 x 4 ele nos levou a pontos incomuns ao nosso senso de realidade. Logo que subimos a serra caatinga adentro, olhamos uns para os outros com a impressão de que caíramos num outro mundo, onde as regras de perspectiva desafiam o tempo e o espaço.
O sistema de interpretação do nosso cérebro certamente teve que fazer um esforço extra para associar os elementos daquela paisagem de vegetação saltitante entre formações rochosas que mais parecem gigantes castelos de areia feitos por duendes. Antes de pisar no chão, podemos até jurar que a tortuosa trilha para carros, cortada à base de picareta pelos moradores locais, não passa de areia fofa e branquinha, com bitolas desenhadas por pneus. Mas não é não. Aquilo lá é duro que só e quem não se der conta disso pode pagar a desatenção com topadas e raladuras.
De cima das rochas o impacto maior é ver que na Serra das Confusões o plano ganha profundidade. Parece um mar de arenito, com ondas rochosas que podem marear. Tudo se mexe e nada se move. É pura ilusão de movimento, como se ora as nuvens de acúmulo que passam no céu fizessem parte do chão e ora as rochas saíssem flutuando multiformes pelo céu. Essa visão espelhada do infinito acontece com a participação invisível, mas não intocável, dos ventos. Eles que ao longo de milênios alteraram a forma das rochas com a cumplicidade das águas.
No dia em que fomos às Confusões, tivemos momentos de céu azul, com nuvens brancas, e de céu nublado, com as nuvens da cor chumbo das carapaças das rochas. Aliás, contam os moradores da região que o nome Serra das Confusões deriva da variação de cores dos paredões – alguns com 100 metros de altura – que, além da diferença cromática das suas formações, alteram os tons de acordo com a incidência de luz, fenômeno que deixa a vista confusa.
Nas áreas fechadas em cinturões de arenito, a vegetação assume características muito especiais, como se tentasse nos lembrar do tempo em que a região foi uma floresta úmida. O clima quente do sertão sai variando de temperatura entre cânions e boqueirões. Há lugares que apresentam sensação térmica de friagem inacreditável. O ar-condicionado da natureza fica sempre ligado em áreas como a da gruta do Riacho dos Bois. Fomos sentir de perto essa maravilha e descemos por um penhasco de uns trinta a quarenta metros, contando com o apoio de duas escadas nas partes mais íngremes.
A entrada da gruta é majestosa. Templo natural. Quem estiver preparado para se iluminar pode fazê-lo ali sem muito esforço. Ao iniciar a entrada na gruta, passamos por uma árvore com raízes em forma de trança… uma surpreendente trança que sobe rumo às nuvens como no mundo mágico do conto João e o Pé de Feijão. Balcões de samambaias e árvores robustas acenavam para nós em nossa caminhada sobre pedras lavadas e raízes sinuosas, avisando-nos que o percurso seguia o leito seco de um riacho que ainda toma água quando chove.
Quando a luz começou a rarear vimos surgir na parede do lado direito um nicho sedimentar, com iconografia que nos trouxe à lembrança as torres da Sagrada Família, de Antoni Gaudí (1852 – 1926), como se elas estivessem juntas em uma expiatória noite de lua cheia. Foi uma grata visão de pura atmosfera noir, em deslumbrante preto azulado. Não sei se essa imagem aparece durante todo o dia, sei que por volta das 15 horas quando passamos por lá esse vulto de beleza artística ilustrou o nosso passeio.
Cruzamos uma área clareada por uma fenda no teto e da profundidade que estávamos podíamos ouvir o canto e ver a silhueta de um bando de andorinhas que se acostava para dormir. As réstias de luz solar que avançavam gruta adentro nos fizeram enxergar duas pequenas cobras, uma rajada de preto e branco e a outra meio amarelada, com pintinhas marrom no dorso. Em seguida, desviamo-nos do percurso principal para caminhar uns cinquenta metros em uma sinuosa galeria de teto baixo, estreito e passagens entrecruzadas. Chegamos a um reservatório de água doce e cristalina, no qual sorvemos o frescor da nossa aventura.
Éramos cinco e só levávamos duas lanternas. Talvez para ficar mais emocionante, uma delas pifou. A escuridão não pareceu maior porque estávamos encantados. Faltava pouco para chegar ao lugar que buscávamos. Mesmo que a outra lanterna também falhasse, tínhamos a convicção de que valeria a pena seguir em frente “enxergando” com o tato. Tomamos a decisão certa, a lanterna funcionou bem e, depois de caminharmos dois quilômetros pelas galerias da gruta, chegamos a um jardim que explodiu de verde o nosso olhar. Em clima úmido e com luz que chega por uma larga fenda, plantas com folhas gigantes, caules retilíneos e um ninho de Arara Canindé, pintando de azul e amarelo uma loca de pedra do paredão, parte alaranjado, parte verde de musgo. Tudo lindo, tudo dádiva.
Na trilha que fizemos para o Alto do Capim entramos em uma caverna com desenhos de círculos concêntricos, pássaros, répteis, redes de caça, trançados e aramados. Deparamo-nos com um tipo de recipiente, com diâmetro e profundidade aproximada de um metro, esculpido no piso, como os que vimos tempos atrás nas cavernas de São José do Piauí. Nessa caverna encontramos as pegadas preservacionistas da arqueóloga Niède Guidon, que colocou uma escada de acesso ao local, mas fechou a entrada com portão de madeira e cadeado, evitando assim a ação de vândalos que possam transitar no parque sem acompanhamento de um guia.
Na Toca do Enoque, outro sítio quem vem sendo trabalhado por Niède e sua equipe, a galeria com tartarugas, lagartos, sol brilhante, tatu, tamanduá, araras, seres aquáticos, pessoas e trançados, feitos com os pigmentos de óxido de ferro comuns na região, apresenta marcas de tiros. Nessa encosta ainda estão visíveis inscrições feitas em diversos níveis de altura por grupos humanos pré-históricos. Embaralha a imaginação ver que por alguns metros de diferença, as pinturas revelam algo em torno de dez a treze mil anos na idade dos artistas que tiveram a feliz atitude de dar atemporalidade à sua vida cotidiana.
No meio da mata paramos para observar uma pedra que é um misto de mão e de pata gigante, isolada sobre um altar, como se uma escultura da natureza avisasse que aquele mundo é sagrado. Emoção igual manifestou-se em mim quando chegamos a um olho d’água, onde samambaias, musgos e cururus escutam o chamado das raízes e do caule de uma gameleira agigantada, que segue as formas das pedras numa surrealista ascensão em busca da luz do sol, que entra misteriosa pelas frestas das rochas de arenito. É um festival de plasticidade, de contorcionismo e de cores e tons, a cintilar na textura das pedras molhadas pela infiltração das águas, sublimando a natureza.