A infância no jogo do consumo
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3

Quinta-feira, 05 de Novembro de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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As expectativas sociais, que um dia gravitaram em torno da Teologia, que até recentemente estiveram presas ao campo de força da Economia e atualmente são atraídas pela Tecnologia, começam a requisitar o olhar da área do Direito, em uma ainda confusa situação de preponderância do poder econômico sobre a cidadania.

Com toda a virtualidade decorrente dos avanços tecnológicos ainda é no município ou a partir dele que a vida se realiza. Neste aspecto, fiquei gratamente surpreso com o tratamento dado à questão do direito do consumidor, que pude presenciar em Passo Fundo (RS), na semana de 26 a 30 de outubro passada, durante a qual estive naquela cidade participando de atividades da tradicional e sempre inovadora Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, em sua 13ª edição.

A cidade, com 192 mil habitantes, localizada a 298 quilômetros de Porto Alegre, chama a atenção pela rede integrada de defesa do consumidor que possui, envolvendo os mais diversos agentes das esferas públicas, da iniciativa privada e da sociedade civil. Além de contar com a presença efetiva do Ministério Público Estadual, da Procuradoria da República e da Defensoria Pública, o consumidor passo-fundense conta com um núcleo municipal do Programa de Orientação e de Proteção ao Consumidor (Procon) e com o Balcão do Consumidor da Universidade de Passo Fundo (UPF), uma instituição de quatro décadas que, com seus 18 mil estudantes em seis campus regionais exerce positiva influência no norte gaúcho.

O direito do consumidor foi inserido na Constituição Federal de 1988 como direito fundamental, mas já em 1986, pouco antes do Plano Cruzado, foi criada naquele município a Associação Passo-Fundense de Defesa do Consumidor que, como lembram os professores Liton Lanes e Rogério da Silva no livro “Balcão do Consumidor – Histórico do Movimento Consumerista em Passo Fundo” (Ed. UPF, 2009), essa associação foi criada com o objetivo de mobilizar e alertar a comunidade para os desrespeitos que eram praticados por fornecedores de produtos e serviços em um período inflacionário insustentável.

Em 1990, a Lei Federal 8.078 criou o Código de Defesa do Consumidor e diversos órgãos oficiais foram instituídos para cumprir a educação e a defesa do consumidor, protegendo-o de abusos e fraudes. Organizações da sociedade civil e entidades privadas de responsabilidade pública também passaram a contribuir nesse processo de formação de consumidores conscientes. Em Passo Fundo, o Balcão do Consumidor, da UPF, idealizado pelo professor Liton Lanes, foi criado em 2006, e passou a atuar apoiado em convênios com o Procon Municipal e com o Ministério Público Estadual. Um serviço especializado para a população e um espaço privilegiado de prática para estudantes de Direito.

Para se ter uma idéia da importância desse Balcão, todo atendimento preliminar encaminhado ao Procon é feito por bolsistas da Faculdade de Direito, que buscam a mediação entre consumidores e fornecedores. Essa atuação da UPF se tornou mais efetiva porque Passo Fundo fez o dever de casa, criando inclusive as suas próprias normas. Em 2007 o prefeito Airton Dipp (PDT) assinou o decreto de criação do Código Municipal de Defesa do Consumidor, instituído formalmente em janeiro de 2009, e tido como a primeira experiência no Brasil de legislação local, que trata das relações do consumo.

Os números revelam por si a importância do trabalho do Balcão do Consumidor: em 2007, dos 2.764 casos mediados pelos estudantes da Faculdade de Direito da UPF, 1.813 não tiveram necessidade de encaminhamento aos órgãos competentes, pois houve acordo entre os litigantes. Em 2008, o Balcão do Consumidor orientou 3.094 situações de conflito entre consumidores e fornecedores e, destes, 2.227 não precisaram apelar para processos judiciais.

A UPF vem realizando anualmente seminários de defesa do consumidor, onde são apresentadas pesquisas e debatidas as relações de consumo e educação. Com recursos do Ministério Público Federal, através de editais da Procuradoria Geral da República, o Balcão do Consumidor realiza atividades educativas na sociedade, visando contribuir para a melhoria das relações de consumo.

A mais recente investida do Balcão foi a criação do boneco “Tchê Consumidor” que anda pela cidade tirando dúvidas sobre os direitos e os deveres dos consumidores. Ele está também em uma série de revistas em quadrinhos, conscientizando a gurizada, falando de produtos piratas, dos cuidados com produtos tóxicos, com choques elétricos, com a alimentação saudável, com a data de validade dos produtos e com a questão do lixo, dentre outros temas sensíveis à infância.

Para adultos o Balcão distribui uma série de cartelas com esclarecimentos aos problemas mais comuns e com dicas sobre práticas abusivas, compras pela internet, garantia de produtos e serviços, cartão de crédito, compras em supermercados e atendimento em agências bancárias, tudo com referências legais e contatos de onde as pessoas podem fazer suas reclamações.

A questão do direito do consumidor está bem avançada no Rio Grande do Sul. Quase um quarto dos municípios daquele estado tem a presença de Procons. “Os números mostram que em apenas dez por cento dos municípios brasileiros já foi implantado o Sistema Municipal de Defesa do Consumidor, por meio dos Procons” (Lanes e Silva, p. 39). É bom não esquecer que é da responsabilidade de prefeitos e vereadores a instalação desse sistema, constituído pelo Procon, pelo Conselho Municipal de Defesa do Consumidor e pelo Fundo Municipal de Defesa do Consumidor.

A problemática do consumismo, o cerco tecnológico e o assédio telemarketeiro ao consumidor exigem urgência da política. “Nunca se ofereceu tanto produto pela internet, por telefone, por classificados enganosos em jornais, por indivíduos inescrupulosos que batem à porta dos consumidores com falsas promessas, com mentiras e enganações”, diz Alexandre Appel, diretor do Procon RS e idealizador do Projeto Consumidor RS, ao apresentar a cartilha “Pequenos Consumidores”, (Procon Porto Alegre, 2005), na qual a advogada Eunice Dias Casagrande, procura simplificar os principais pontos do Código de Defesa do Consumidor para crianças, traduzindo a linguagem jurídica da lei para texto mais acessível.

Em Passo Fundo, a relação entre o Direito e à infância entrou na pauta da Jornada Literária deste ano. Como autor do livro “Eu era assim – Infância, Cultura e Consumismo” (Cortez Editora) fui convidado pela professora Tânia Rösing, coordenadora dessa efetiva movimentação cultural e pelo professor José Carlos de Souza, diretor da Faculdade de Direito, ambos da Universidade de Passo Fundo, para fazer duas palestras sobre os impactos do consumismo na infância.

Acompanhado pelo coordenador do Curso de Direito, professor Giovani Corralo e pela professora Maria Augusta D’Arienzo, diretora da Biblioteca Municipal, procurei observar que, sendo o Direito um produto social, não é razoável querer que as crianças entendam a trama das leis a ponto de fazerem intervenções políticas diante da violação dos seus direitos. Na minha fala defendi a necessidade de criação de oportunidades culturais públicas para meninas e meninos, como a Festa do Dia do Saci, e coloquei a defesa coletiva da infância no âmbito do direito difuso e da cultura, por ter o consumismo na mesma conta transindividual da segurança pública e do meio ambiente.