A literatura e a música
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 07 de Agosto de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A questão da subjetividade da percepção e do aprendizado é de uma complexidade extraordinária, mas nem por isso deve nos desencorajar a procurar respostas que estimulem a função ativa do sujeito em favor de uma educação voltada para a consciência crítica e para a cidadania, por meio da descoberta de formas mais sofisticadas de enxergar bem. Nesse esforço de trânsito pelo campo da cognição e da perceptividade tenho trabalhado a literatura e a música como dois dos mais significativos canais de produção de visão.
A premissa que embasa o meu raciocínio é a de que na educação precisamos distinguir que uma coisa é ver algo e outra é ter uma visão de algo. Ao tratar ontem dessa questão, no Centro de Convenções de Sobral, dentro do programa “Olhares – O Ofício de Educar”, da Escola de Formação Permanente do Magistério, frisei que embora a predominância da visão sobre os demais sentidos tenha se tornado cada vez mais presente em nossas vidas é urgente que nos inclinemos a entender a dimensão determinante assumida pela imagem na formação do nosso olhar.
A combinação de literatura e música, como fator de evocação de dados memorizados, que tenho experimentado em meus livros infantis, me fascina porque essa catálise de linguagens prioriza a imagem que se forma dentro do leitor e não aquela desenhada para ele, por mais caprichosa que seja. Considero um grande avanço os destaques dados à ilustração nos livros dirigidos às crianças, sobretudo quando apresentam traços de qualidade e visam atrair o estudante para a leitura. É um recurso válido, mas não suficiente para inspirar as imagens de mundo que nos cercam. Na fenomenologia da percepção para o enxergar de pálpebras abertas ou fechadas, a lembrança e o esquecimento de imagens tem mais a ver com o cérebro do que com o olho.
Em sua biofilosofia da percepção visual, Philippe Meyer, professor de filosofia e de ciências da Faculdade de Medicina Necker, de Paris, tem assegurado que o cérebro só percebe realmente o que procura sob o efeito de estimulações sensoriais, como as que são possibilitadas pela literatura e pela música, ou de seu próprio pensamento. Esclarece que os objetos não nos são dados como tais, mas reconhecidos e reconstituídos por um cérebro dotado de capacidade de análise, de síntese e de hierarquização. Ao dizer que não é o olho, mas sim o cérebro que vê, Meyer nos estimula a conotar que a definição das imagens passa por filtros estéticos, religiosos, ideológicos, míticos e emocionais.
Por contar com linguagens de forte semanticidade, a prática associativa da literatura e da música na descoberta de referências visuais se completa com a transformação de informações implícitas em informações explícitas. A articulação dos atos perceptivos da dimensão visual presente no texto literário e na música vai além das analogias, pois tende a se pronunciar na mistura espontânea de sensações, que a psicologia chama de sinestesia. Nesse estágio, os elementos imagéticos nascem das expressões sensíveis que se animam fora da intenção original do autor e dentro do domínio perceptivo de cada um.
A literatura e a música são espaciais em seus atributos básicos de simbolização. As palavras e os sons possuem campos de expansão e de contração, que significam espaços de liga com a visão e, conseqüentemente, de projeção do algo em comum das paisagens pessoais. O que somos capazes de imaginar por força da escrita e da composição musical vem de referências extensíveis, influenciadas pelo cérebro no seu farfalhar de detalhes da nossa experiência para produzir visões e que chegam à consciência do sujeito que se percebe dono de uma busca.
A relação da literatura com a música tem sido estudada mais nos seus aspectos fonéticos. A sonoridade das notas e o ritmo das palavras constituem, sem dúvida, uma propriedade musical da poesia e da literatura, que precisa ser considerada. Entretanto, a musicalidade das palavras e a verbalidade da música redescrevem sentimentos imagéticos brutos, refinando-os em situações analógicas de afetividade e sensações representativas. Por esse viés podemos observar nuanças complexas de volação, cognição, imaginação, sensação e emoção na construção de visão de mundo.
A aproximação da literatura e da música vem cumprindo funções complementares nos mitos, nas lendas e nas fábulas mais antigas. Desde o canto da sereia ao canto da cigarra; da declamação acompanhada de lira à poesia em rimas dos trovadores e menestréis; do canto gregoriano aos versos cantados do rap; do improviso dos repentistas aos causos ensaiados e acompanhados de temas musicais, que o discurso musical se confunde ou dialoga com o verbo. Na atualidade, a literatura performa no áudiolivro, enquanto o discurso sonoro acolhe o ruído, a imprecisão rítmica, os protocolos aleatórios, a melodia parasita e a imprevisibilidade temporal.
No universo das obras clássicas a música chegou-se à literatura para produzirem grandes momentos de criação, fantasia e drama humanos. Exemplos não faltam: Dom Quixote, de Cervantes, passou a ser poema sinfônico de Strauss; Carmen, de Prosper Mérimée, ficou mais conhecido como ópera de Bizet; O Guarani, de José de Alencar, recebeu cores sonoras de drama musical por Carlos Gomes e o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, acaba de virar peça para orquestra, soprano e narrador “Olhos de Capitu”, de João Guilherme Ripper.
A combinação da literatura com a música, especialmente na infância, no período de alfabetização, é um recurso de experienciação que facilita o exercício da imaginação na produção da consciência. No Brasil, trabalhos como o dos disquinhos coloridos do Braguinha (1907 – 2006) e a obra de canta-contação da Bia Bedran, com a narração intercalada com música, são preciosidades a serem melhor aproveitadas pelas educadoras e pelos educadores comprometidos com o reposicionamento de sensibilidade na educação brasileira.
O recurso da música na potencialização da leitura não deve ser visto como elemento auxiliar, como apoio a qualquer suposta deficiência da literatura, mas como experiência pedagógica intersensorial. A operação didática com duas linguagens na imaterialidade do significado das palavras e dos sons tem o poder de despertar as pessoas para o que não necessariamente está presente e para o desenvolvimento de novos olhares na construção da intencionalidade da consciência.
Não consigo enxergar a educação sem leitura; nem leitura sem cultura. A familiaridade geradora de visão existente entre a literatura e a música é uma alternativa de ensino de base, que leva à relação com outras artes e mídias. Dotada de múltiplos sentidos, a convergência de horizontes literários e musicais abre renovadas possibilidades para os caminhos do pensamento, revelando um mundo de ações entre a imagem natural (física) e a imagem cultural (simbólica). Aprender a olhar pelas palavras e pelos sons não é panacéia nem única saída, mas uma possibilidade importante, no sentido etimológico da palavra, de importação do que interessa.