A mente da criança em situação de temor
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 20 de junho de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O aumento da violência, da sensação de insegurança e a propagação do medo é talvez o mais complexo fenômeno social e político dos dias atuais. Por muitas vezes me pego pensando sobre a repercussão de tudo isso na mente das crianças. O que estaria se passando na cabeça de meninas e meninos nos esforços que devem fazer para enfrentar essa incômoda situação? Quais os rumores que mais as perturbam e qual a forma imaginativa, própria da cultura da infância, que elas podem estar pondo em curso ante a exacerbação cotidiana do perigo?
O momento de intranquilidade pelo qual passamos, com movimentações cidadãs de descontentamento misturadas a oportunismos ideológicos, aponta para uma atenção especial de pais e educadores com relação a experiência de produção simbólica das crianças nesse contexto de incertezas. O que elas têm a dizer e o que aceitam ouvir sobre tudo isso é fundamental para a estabilidade das suas emoções e da maneira como lidam com a questão. Li sobre formas de fazer isso no livro “Um fio de esperança” (WMF Martins Fontes, São Paulo, 2010), da escritora holandesa Marjolijn Hof, em cuja narrativa a autora valoriza o espaço de representação da lógica argumentativa da protagonista, uma menina que mora com os pais e uma cadela.
Essa personagem principal tem o nome de Lili, na edição brasileira. Tudo seria muito bom na vida de Lili se não fosse o fato de o seu pai, como médico, viajar muito em missões humanitárias para lugares que o colocam em risco de morte. A menina até se esforça para convencê-lo a não viajar, mas ele não desiste e ela fica sozinha em casa com a mãe, a cadela e, eventualmente, com a avó, enquanto ele vai trabalhar em uma zona de guerra e desaparece na selva. Na tentativa de confortar Lili, sua mãe comenta que a probabilidade de ela ficar sem pai é muito pequena, haja vista que das amigas da filha apenas uma não tem mais o pai vivo. Lili quer fazer alguma coisa para reduzir as chances do seu pai de não ser atingido por um enxame de balas perdidas. E parte para a busca de soluções pelo imaginário infantil.
Ao utilizar a guerra, como representação extrema da violência, e recursos persuasivos da maneira como a criança vê e age no mundo, Marjolijn Hof oferece ao leitor uma experienciação, com leveza literária, pelo percurso do entendimento do lugar social e afetivo de crianças e adultos, na ambiência de mal-estar, provocada pela situação de temor resultante de cenas diárias onde muitas vezes alguém querido sai de casa, deixando a sensação de que pode não voltar, simplesmente porque do jeito que as coisas andam qualquer um parece ameaçado de ser morto em um assalto, em acidente de trânsito ou de ser sequestrado. Fundada ou infundada, essa comoção coletiva é potencializada pela influência constrangedora e coercitiva da exacerbação da insegurança.
Em “Um fio de esperança” a autora reconstitui aspectos relacionais de pais e filhos, com ênfase na capacidade infantil de traçar um caminho perceptivo fora da maneira de raciocinar dos adultos. Sugestionada por tudo o que sabe que pode acontecer com o pai, a menina entra em estado de transferência reversa, direcionando a bichos domésticos um destino forçado que, na sua hipótese, abrandaria a possibilidade de perda do pai. E vai criando artifícios para isso, adquirindo ratos de estimação para, em seguida, pensar na morte de cada um, por não conhecer nenhuma criança que tivesse perdido ao mesmo tempo um rato, um cachorro e um pai.
O livro relata passagens das maquinações de Lili na defesa da sua vontade de recuperar a presença paterna. Com atos fantasiosos, que passam por suaves mentiras, próprias da infância inteligente, e por desejos de matar animais, a fim de cumprir seu desiderato, ela enfrenta uma forte tensão psíquica na busca de superação da dor. Tomada por um desvario repentino, ela vê a figura do pai na pessoa do homem que a impede de jogar a cadela de cima de uma passarela do anel viário. O choque entre o delírio e o socorro providencial a faz notar a gravidade do ato terrível que quase cometeu. Lili fica enjoada e quer vomitar, numa reação que se repete quando ela sabe que o pai foi encontrado, mas que teve uma perna dilacerada pela explosão de uma mina.
Na psicanálise, esse tipo de náusea é visto como reflexo de fracasso do querer projetado. Marjolijn Hof, talvez por ser filha de um psicólogo, explora bem a dinâmica entre a agonia da espera e as surpresas indesejáveis. O episódio da quase morte da cadela é tratado com naturalidade quando Lili chega em casa: “Pensar e fazer são coisas diferentes. Se você soubesse tudo o que passa na minha cabeça! Já matei muita gente, em pensamento!” (p. 76), diz a mãe ao longo de uma conversa que se resume à compreensão de que a mente tem a liberdade de pensar coisas estranhas, e que cabe a cada pessoa a liberdade de executá-las ou não.
A troca de procedimentos persuasivos entre filha e mãe, cada qual no seu modo de pensar, é um dos pontos de atração de leitura desse livro. A autora faz isso com simplicidade, unindo as duas pelo mesmo motivo e em justa medida. O texto apresenta ainda recursos estilísticos que mostram claramente o que orbita no campo da comunicação dos acontecimentos no mundo adulto, com suas tensões diante do drama humanitário, do amor familiar e dos telefonemas excessivos de parentes e amigos em busca de notícias, e o que é representação associada à forma como a imaginação infantil se desenvolve para dar suporte à criança no seu lidar com a existência.
Dentro de casa Lili chega a ensaiar momentos de tranquilidade quando a mãe resolve fazer umas mudanças na sala e elas gastam um bom tempo do dia lixando e pintando um móvel. Essa atividade permite que ela chegue perto da paz no lar, como se o pai não estivesse desaparecido. Nesse ínterim, Lili recebe da amiga Marjorie um cartaz feito com espírito solidário, no qual um desenho a lápis mostra a imagem do seu pai, seguida da palavra “Desaparecido”, em letras pretas enormes. “É um cartaz. Porque seu pai foi dado como desaparecido e espero que o encontrem logo” (p. 78). Mesmo achando o presente ridículo, Lili aceita a sugestão da mãe de colá-lo na janela, em lugar que não desse para ninguém ver, mas que deixaria a amiga contente.
Lili não suporta o carimbo de “herói” dado ao seu pai na comunidade. Tornou-se comum chamar de herói alguém que ajuda os outros. Ela explica a rejeição: “Herói era uma palavra estranha, e não tinha nada a ver com meu pai. Herói é uma palavra que aparece em livros ou filmes. Nunca, num filme ou num livro, eu estaria puxando uma cadela pela coleira (…) Eu teria saído à procura do meu pai e nem teria medo das balas perdidas” (p. 55). Na família, a interpretação da avó de Lili é bem diferente. Para ela, o filho é um egoísta que só pensa em si. Mas a menina pondera a maneira de falar da mãe do seu pai: “A vovó disse isso porque está com medo” (p.60). E quando Lili reencontra o pai, já com a perna amputada, tenta convencê-lo a não viajar mais, mas acaba tendente a ganhar o mundo com ele, empurrando a cadeira de rodas, lustrando a sua prótese e falando o tempo todo para ele tomar cuidado.
Por um lado, o livro “Um fio de esperança” contempla o sentimento que, ao estar colocado na esfera da subjetividade da sensação, move o pensamento e se transforma na ação infantil de querer fazer algo. Por outro lado, o livro de Marjolijn Hof trata o desaparecimento do pai com objetividade, dando à menina o direito de acompanhamento do que se impõe como realidade. A combinação da relação entre a situação concreta e o campo simbólico no plano literário cria as condições para a perspectiva de chance vislumbrada pela protagonista dentro do que está ao seu alcance imaginar e fazer. A mobilização das forças inocentes de Lili para conseguir seu objetivo é um bom exemplo de como funciona a mente da criança em situação de temor.