A metáfora do futebol
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 6
Terça-feira, 24 de Novembro de 1998 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O filme tem a sensibilidade sutil das grandes obras. Abre o coração de quem interage com os personagens na grande mesa de bar que, mais do que o centro da tela, é a távola que nos acompanha vida afora. Vai além da trama e do drama do futebol. O esporte dos boleiros é falar do mundo através de vivências e percepções espetaculares. Ugo Giorgetti encarou o tema na sua dimensão mais alma, mostrando que tem bola para isso. Não deu outra: gol de placa.
O diretor brasileiro ganhou com “Boleiros” o prêmio de Melhor Diretor na 18ª edição do Festival de Amiens, na França, na qual foram exibidos 13 longas-metragens e 12 curtas. O evento tem um quê muito especial, por valorizar questões dos direitos humanos e da tolerância social. É uma festa reconhecida pela exigência e seriedade de propósito. Boleiros, quinto longa de Ugo Giorgetti, arrancou aplausos em todas as sessões, o que não é comum no histórico do festival, honrando o nosso cinema de qualidade.
O segredo do filme está no mergulho que o telespectador dá dentro de si mesmo ao se deparar com juízes aposentados, ex-jogadores e profissionais do futebol, compartilhando lembranças de partidas, atletas, clubes e árbitros. O ambiente de amizade e referenciais comuns gera a quebra dos limites pessoais, mostrando vulnerabilidades, sonhos, desesperanças e as razões de cada um.
A maneira encontrada por Giorgetti para contar esse lado humano do futebol revela o requinte da sua direção premiada. Há momentos em que a conversa é tão íntima da gente, que as passagens externas parecem alegorias da nossa imaginação. A cada comentário, cada história curiosa, cada gesto dos personagens, aumenta a força surpreendente da narrativa e o poder de envolvimento da obra. É magnético em sua teia de filigranas do comportamento humano.
O papo vai rolando e costurando casos emblemáticos quadro a quadro. Poucos momentos no cinema conseguiram ser tão felizes quanto o trecho de Boleiros que conta a fábula do Paulinho Majestade. Nele, o indivíduo aparece em seu campo inesgotável de liberdade e possibilidades, muitas vezes inexplicáveis pela linguagem conceitual. Se por um lado, a penúria implacável pressiona o ex-craque Paulinho a anunciar nos jornais a venda das suas medalhas e troféus, por outro, o fascínio pelo passado de glórias não o permite definhar seu charme impecável. É a metáfora do futebol em seu jogo velado com a vida, fugindo da compreensão lógica intelectual, como uma falta cobrada de folha-seca (1) e o imprevisível destino da bola.
Ugo Giorgetti evoca o simbólico guardado na sua memória de amante do futebol de várzea, para dar consistência ao roteiro e à direção de Boleiros. Em texto publicado no livro Brasil Bom de Bola (Tempo d’imagem – Fortaleza, 1998), ele chuta a gol toda a sua indignação com o descaso do poder público para com os jogos populares dos dias de domingo. “O futebol, que antes era na rua, agora acontece na sala de visitas, pela televisão”, argumenta. Esse distanciamento da bola, das dificuldades, da beleza, da sofisticação de um lance ou de uma partida, resulta numa pobreza crítica, lamentada pelo diretor.
Como defensor do futebol arte, elegante e mágico, na sua dimensão de prazer, Ugo Giorgetti destila em Boleiros um olhar de pureza pontuado ao longo da fita. As entrelinhas das conversas deixam escapar que um craque se conhece pelo jeito de andar, de observar o tempo. Camisa de clube era bem mais empolgante quando, no lugar de marcas e aquele monte de desenhos, tinham as cores que o atleta defendia com amor.
E assim, Boleiros apresenta alguns dos diversos lados do mundo não tão redondo do futebol. Tem a grotesca história de corrupção do juiz Virgílio Pênalti, os exageros vazios de certos setores da crônica desportiva, a situação de preconceito gerada pelo choque entre a condição do negro e o poder de consumo que tem um atleta da vez, além de um apanhado de toques agradáveis, vividos por atores escolhidos a dedo, como Otávio Augusto, Flávio Migliaccio, Marisa Orth, Rogério Cardoso, Lima Duarte e Denise Fraga.
Conscientes de que grande parte deste filme é sobre um tipo de futebol que não existe mais, os boleiros de Giorgetti demonstram a irônica vergonha de terem sido tão importantes para o futebol brasileiro. As fotos na parede negam que é possível continuar assim. “Parar de jogar bola não é justo”, diz um personagem em sua crise existencial. E explica que jogou 20 anos, que já é técnico há 25, mas só consegue sonhar jogando, nunca sentado no banco treinando um time qualquer. São imagens contundentes da arte que, assim como a emoção de uma partida de futebol, não podem ser traduzidas em palavras. É preciso ver, se envolver e crer na poesia encantadora do cinema brasileiro.
(1) folha-seca é um tipo de chute com a parte de fora do pé que provoca o desvio inesperado da bola, enganando o goleiro – lance atribuído a Valdir Pereira, o Didi, contemporâneo de Garrincha e Nilton Santos no Botafogo e na Seleção Brasileira.