A música visual de Rebeca Matta
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.2
Quinta-feira, 25 de abril de 2013 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A corola das flores é feita de pétalas. A tatuagem de flor na pele é o lugar do poético na superfície do corpo. E o corpo vibra, criando visões sonoras e interpretações imagéticas da música ao que vêm de todo lugar e que está em todas as coisas. A pele não fica somente no corpo; ela está nas paredes, no vento, na alma dos instrumentos, em tudo o que nos entrega o som. É assim que a cantora, compositora e artista plástica baiana Rebeca Matta chega com seu CD e DVD “À Flor da Pele”.
Em Rebeca, a flor da pele é sônica. O pulso sonoro-musical é o limite da epiderme, em seus prolongamentos pelas representações do que sentimos, do que escutamos, do que vemos modular-se com as reverberações do corpo, da mente e do que pode estar além da experiência. As onze faixas do seu novo álbum revelam a artista em toda a sua rede conceitual biológica, erógena, espiritual e corporal.
Ela parte da pele para chegar a outras camadas de si, pétala por pétala, corola adentro; flor tatuada no braço, cores no espaço e um buquê de sensações, cintilações interiores e plasticidade substantiva. O tom castanho projeta-se da luz dos olhos, das longas madeixas e do vestido-macacão para se encontrar com a atmosfera âmbar e azul do show, enquanto nos olhos da cantora uma sombra azul horizontal sugere a linha do mar.
Sincera e sensível, desengonçada e bonita, Rebeca Matta ecoa no campo do rock, da eletrônica e da MPB, habitando um mundo plurissensorial, concatenando linguagens e articulando falas de variadas angulações. Sem pose de ninfa retrô, ela utiliza o próprio corpo como meio de expressão estética, fusionando tecnologia e sensibilidade em contundentes práticas de dimensão imersiva.
O eletrorrock visual de Rebeca Matta integra uma plêiade musical de inspiração eletrônica e plasticidade neoexpressionista, da qual pode-se ouvir e ver gestos e digressões experimentalistas e filosóficas, como as da cantora estadunidense Glasser, na trilha do nosso tesouro comum, que é fazermos parte uns dos outros (Theasure of we). Rebeca canta: “Eu vou andar sem medo da distância” (É que a vida é) e Glasser também está nessa: “Enquanto marchamos em círculo / há fogo em seus olhos” (Glad / Satisfeito).
Nesse ambiente de fascínio pelos caminhos da criação, com o cuidado para não separar as linguagens artísticas desnecessariamente, encontra-se ainda o pop e eletrônico da cantora dinamarquesa Oh Land e as figuras sônicas de Zola Jesus, cantora russo-ianque, definida pelos préstimos ao sofrimento em eletrônico gótico e cujo nome é uma mistura do escritor francês Émile Zola (1840 – 1902) com Jesus Cristo.
Em “À Flor da Pele”, a compositora, cantora e artista plástica baiana expressa uns quês de achados e perdidos da cena musical contemporânea, que se estendem do pop experimental da cantora islandesa Björk e sua biofilia tecnológica, à mistura de Música Plural Brasileira com eletrônica, da cantora gaúcha Laura Finocchiaro, passando pelo indie rock e new age do trio canadense Austra, que toma emprestado o nome da sua líder, a pianista e cantora Katie Austra Stelmanis, para fazer som ritualístico.
O CD/DVD de Rebeca Matta, com desenhos e direção de arte da própria cantora, que divide a programação visual com o DJ Boing, é um bom espetáculo de redesign multirreferencial, relativamente lento, sem movimentações súbitas e com cordas caindo do teto em linhas luminosas que parecem seguir o movimento corporal do músicos. A cenografia de Marcondes Dourado ajuda a escuta das imagens, como se fosse uma das instalações de dimensão sônica das artistas paulistanas Rejane Cantoni e Daniela Kutschat e seus efeitos áudio-tátil-visual.
Luz e som têm em comum o fato de serem vibrantes. A cromofonia não é uma arte nova. São seculares as tentativas de correspondência cromática com a gama de pigmentos disponíveis, dos fenômenos vibratórios acústicos com as radiações das cores. Há, inclusive histórias famosas de esforços de artistas na criação e no aperfeiçoamento de teclados capazes de fazerem a associação direta da cor com o som.
Ralf Hütter, líder do grupo alemão Kraftwerk diz que “as pinturas são como notas musicais, compondo melodias alimentadas por elementos básicos” (OESP, 5/3/2009). Para ele, a música eletrônica tem um caráter construtivo de harmonia e equilíbrio. Nesse aspecto, o som de Rebeca Matta ronda o apelo de Hütter ao requintado uso artístico da tecnologia, libertando da distopia contemporânea todos os cuidados estéticos e de humanização.
A afinidade dos sentidos enche o palco no audiovisual do DVD de Rebeca Matta. A gravação capturou a interconexão em trama do sensível com a visão interna da artista, em um escutar com os olhos e um ver com os ouvidos, onde sons e imagens acontecem no entendimento do múltiplo, em animação de intersubjetividades. A força das flores sônicas de Rebeca está na sua imponderável imagem generativa, criada a partir de processos algoritmos computacionais.
O CD e DVD “À Flor da Pele” trata o físico e o digital, o sentimental e o técnico com a mesma atenção, dispensando formas pixeladas e segregação de linguagens. Quase todas as composições são de autoria de Rebeca, sendo uma em parceria com Peu Sousa, duas com Ronei Jorge e duas regravações, “Balada do Louco” (Arnaldo Batista / Rita Lee) e Xique-xique – Parabelo (Tom Zé / José Miguel Wisnik). Nesta música, a cantora abre os braços, deixa as pernas bambas, entra em clarões de transe glauberiano e mostra a universalidade das pegadas da tradição nordestina.
Com patrocínio da Vivo, por meio do benefícios do Faz Cultura, programa de incentivo do governo da Bahia, o novo álbum de Rebeca Matta foi gravado com acompanhamento de uma banda formada por Juninho Costa (guitarra), Emanuel Venâncio (bateria), Cadinho (baixo) e João Meirelles (programação eletrônica) e a participação especial de Mário Ulloa (violão), Luisão Pereira (guitarra), Fernanda Monteiro (violoncello), Ronei Jorge (voz) e Peu Sousa (guitarra e voz). Nos conteúdos extras, um clipe da música “Population” (Rebeca Matta e Ronei Jorge) e dois outros olhares sobre “É que é a vida” e “Balada do Louco”, respectivamente com participações de Daniel Lisboa e Joãozito.
Gravado ao vivo no Cine-Teatro Solar Boa Vista, em dezembro de 2011, “À Flor da Pele” ficou pronto em dezembro de 2012 e foi lançado em Salvador no dia 12 deste mês de abril. Sem pressa, porque Rebeca Matta trabalha com a liberdade dos que fazem arte experimentando, curtindo, cuidando de cada detalhe. Foi assim também com os CDs “Tantas Coisas” (1998), “Garotas boas vão pro céu… garotas más vão pra qualquer lugar” (2000) e “Rosa Sônica” (2006), e todos são trabalhos de grande importância para a música brasileira.
O elemento constitutivo da obra de Rebeca Matta é o belo e, por isso, ela trabalha com sons e imagens que expressam seus modos de ser, de se vestir e de se pintar. Ao contrário da máscara, na imagem cênica, que coloca o texto e a música por trás, Rebeca combina pulsos e pulsões para fluir em uma nova compreensão musical, quebrando hierarquias, sem cair nas facilidades das estranhezas, nos hibridismos da moderna arte provera e em craftvismos.
O projeto musical e visual de Rebeca produz uma maneira especial de exploração das propriedades transformadoras da arte em estado de formulações menos intimistas e mais concretas, da música como meio de relação pessoal com o mundo. Ele revolve as condições dos fluxos dominantes da música como crônica do cotidiano, das baladas pop e dos modelos artificiais de sucesso, projetando-se em um jogo de possibilidades de sons, imagens, palavras, luzes, formas e cores.