A nudez da alma
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 16 de Novembro de 1999 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O hábito de medir os avanços do mundo pelas exceções sedimentou em nós a grande mentira que resulta do esforço de almejarmos ser o outro. Tudo o que consideramos “de ponta” na humanidade é sinalizador e indispensável, mas não é a velocidade real do planeta. Ao acolhermos esse sinal como realidade, passamos a ser a nossa própria projeção, desviando o olhar do que verdadeiramente poderíamos ser, com a força que dispomos para caminhar passo a passo, dia após dia. Caímos na malha do consenso de que isso não tem jeito e na passividade de achar que a melhor escolha é deixar de escolher, perdendo a chance de poder apreciar algumas coisas mais belas do que as que pensamos estar vendo.
Enveredar pelo risco, e até pelo erro, na busca de se encontrar, é melhor do que a comodidade impostora da correção alheia. Quando deixamos de coçar onde coça, para fingir que é agradável ficar se esfregando nas ostras, apenas porque prometem pérolas, estamos desmoronando a nossa fantasia de futuro. Essa desrazão me intriga e desafia permanentemente o meu comportamento. Não que eu tenha a pretensão de querer andar inflexível em meio à multidão. Gosto dos desvios que a combinação desordenada de ombros provoca. Mas o olhar, não; não acho que vale a pena abrir mão da paisagem que fascina.
O mais honroso gesto do desejo é a construção da sinceridade, em seus detalhes enunciativos de grandes e improváveis efeitos. Se observarmos o cotidiano por diferentes ângulos temporais, poderemos perceber que incorrer na aparência em nada garante o caminho da felicidade. Os motivos da necessidade posta ao acaso questionam a realidade objetiva. Cada resultado da ação de viver depende de pequenas atitudes, responsáveis para que os acontecimentos ocorram de uma determinada maneira e não de outra. Se duas pessoas se encontram, mas um simples descuido para atender a uma ligação telefônica as faz perderem-se de vista, nada impede que anos depois voltem a se encontrar para um amor profundo. Da mesma forma que nada garante que, não fosse a interferência do telefonema, o primeiro encontro teria revelado esse amor.
Esse raciocínio está mais para teoria do caos do que para crença em destino traçado. A definição de tais incertezas passa pela vontade, pela atenção intuitiva e pelo desapego aos padrões engessadores do querer. Nossa força dramática é presa fácil da expiação e do sentimento de culpa. Fundimos impotência com privação de fé e acabamos alimentando fartos negócios de igrejas e bingos. Por um bom tempo pensou-se que a quebra dos tabus sexuais redimiria homens e mulheres da introspecção castradora. Nada feito. Simplesmente passamos a praticar mais o ato sexual, sentindo menos o seu valor como pulsão de vida. A oferta sexual mudou da hipocrisia das alcovas sombrias para a dos apartamentos espelhados. Substancialmente, dá para passar uma pela outra, sem necessidade de troco.
A dificuldade de fugir da busca da exceção dominadora, foi levando nossas emoções ao limite do seu próprio glamour. O caso do rapaz que com ferocidade vã, metralhou a platéia de um cinema em São Paulo, é exemplar desse delírio alucinatório. Para a dissonância que embala as aspirações de uma elite sem cultura e sem horizontes, aquele gesto foi normal. Espera-se muito pouco de quem tem pouco para se emocionar. Um garoto que brinca com drogas pesadas e tem uma arma de cinco mil reais para se divertir é um potencial suicida. A novidade na ação do serial killer do shopping paulista é que sua vaidade sofisticou seu suicídio, por querer ver o desfecho da adrenalina investida, assistindo ao espetáculo da mídia. E venceu.
Dentro do rumo apontado pelos exemplos passados à juventude, não consigo imaginar uma emoção mais qualificada do que a da matança espetacular. Outros jovens de status semelhante devem estar morrendo de inveja e muitos, com certeza, tentarão superar essa audácia bem-sucedida. Que juiz corrupto teria sido mais encantador? Que político bandido teria sido mais ousado? Que ratinho de televisão teria sido mais instigante? Que… quem… Ninguém. O Brasil começa a entender as regras do Primeiro Mundo e a fazer o dever de casa, como o diabo gosta. Já temos condições de participar com orgulho do ranking internacional, onde os Estados Unidos, a Alemanha, o Japão e outras potências esbanjam medalha de ouro. Estamos saindo do anonimato. Tem menção honrosa à vista.
Ironia negra à parte, vejo que não temos como adiar a descoberta do que queremos ser. Existe um trunfo nesse jogo. Depois de 500 anos de silêncio, entre heróis mortos e vivos acovardados, poderíamos criar vergonha e começar a dizer o que sentimos, nossas dúvidas e esperanças reais. Desnudar a alma, com sua graça e beleza plural. Não faltarão fontes de inspiração para a gente fazer uma Playboy dos nossos corpos imateriais mestiços. Formamos uma nação futurista pela miscigenação e ainda não atentamos para isso. Vamos exibir o espírito com arte e reproduzi-lo exaustivamente em revistas e na publicidade, excitando e divertindo a esperança fogosa pronta para nos iluminar. E, quando o poder de seduzir pela força de se fazer amar (e não de destruir) empolgar mais, teremos chegado ao fio condutor do nosso próprio eu-social.