A oficina mítica de Brennand
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 03 de Maio de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A Oficina Brennand é hoje uma das mais representativas atrações renovadoras do turismo cultural da velha Recife. Com sua museologia transbordante ela incita a conciliação entre o viver e o imaginar, conservando e apresentando a arte vigorosa do pintor, desenhista, muralista e escultor Francisco Brennand, que no próximo dia 11 de junho completará 80 anos de idade. Barba branca, óculos de aro redondo e dourado, boné marrom e bengala de madeira com o cabo trabalhado, Brennand é criador e personagem do seu templo de arte, onde, em passos arrastados e um rosto que sorri, trabalha com sua equipe na exploração das possibilidades plásticas do barro.
A construção desse extraordinário espaço de esculturas cerâmicas começou em 1971, quando Brennand instalou seu ateliê nas ruínas de uma fábrica de tijolos e telhas, herdada do seu pai no bairro da Várzea. Além de uma atmosfera misteriosa, a velha olaria, fundada em 1917, tinha ainda como atributo positivo, para quem desejava construir um romanceiro escultural, uma área preservada de Mata Atlântica, banhada pelas águas do Rio Capibaribe, com cerca de 15 mil metros quadrados. Talvez por conta disso, a Oficina tenha um agradável campo de força na relação com a natureza.
Logo na entrada do sítio, um túnel arborizado prepara o visitante para o choque estético da Oficina Brennand. Ovos cósmicos e figuras marciais avisam da chegada. Em mescla de técnicas de molde e modelagem, as peças antropomorfas (parecidas com gente), zoomorfas (em forma de bicho) e fitomorfas (que têm atributos de plantas) enchem o lugar de sentidos admiráveis, com seres fantásticos, cabeças anômalas, vaginas entreabertas, vasos globulares, jarras, moringas e pratos cheios de arabescos. O visitante é recebido por um quarteto de saltimbancos, disposto graciosamente sobre a grama da parte restaurada do prédio da Cerâmica São João da Várzea.
O Templo Central, onde fica o Ovo Cósmico, símbolo da imortalidade, é bem protegido por muralhas cheias de iconografias em diversos formatos e desenhos. Relevos e mais relevos com caracteres, figuras enigmáticas, adornos, representações mitológicas, lagartixas, sapos, tartarugas, ovelhas e aves, dentre as quais se destaca o Pássaro Rocca, figura totêmica que desempenha as funções de guardiã do templo. A Oficina Brennand dispõe também de galpões com esculturas e painéis do artista e de uma galeria onde estão as telas do pintor com paisagens, pessoas e animais, produzidas nas últimas seis décadas.
Mas o que nos mostra Brennand em seu devaneio? Ao visitar a Oficina, senti que sua obra reflete a monumentalização da vida pela energia do barro trabalhado em um mundo de acurada imensidão. Aquela reunião de artefatos surpreendentes constitui uma simbologia a um só tempo estranha e familiar. Esculturas sólidas que parecem leves e arquétipos vadios que parecem firmes povoam temas atordoantes com criatividade e delicadeza. Em um pleno exercício de arqueologia da alma humana, onde os significados não pedem explicação, figuras exóticas reconstituem imagens do que ainda não nos demos conta de que somos.
A obra de Brennand é um testemunho da existência real do imaginário. Ela materializa a imaginação e sintetiza os seus aspectos míticos. É um compêndio de arte cosmogônica. Suas peças de argila não foram arrancadas de túmulos de faraós egípcios nem de tumbas reais da milenar civilização pré-incaica. São vestígios em cerâmica das escavações virtuais feitas no interior da mente alegórica do artista. Fazem parte da base de documentação da subjetividade artística de Brennand. Os ícones dessa obra funcionam, não como convenções para entendermos uma determinada época, mas como elementos de comunicação do sublime no ser humano.
A argila trabalhada nos aproxima a usos da cerâmica que vão da arte mochica a marajoara, mas também projeta simultaneamente o barro na fantasmagoria do futuro. A arte em cerâmica de Brennand tem um presente tão intenso de transcendência e atemporalidade que se torna milenar para trás e para frente. Se os achados arqueológicos contribuem para explicar como viviam os povos no passado, o acesso ao trabalho de Francisco Brennand explica o quê? É chave para quê? Qual o segredo da sua obra? Pelo que senti ao visitar a Oficina Brennand, ela é um culto à arte, um espaço de ritual de contemplação e reflexão.
O inquietante no parque de esculturas da Várzea do Capibaribe é a variação de conceitos de irrealidade, com o qual ele nos descreve em formas e proporções desconcertantes. Por meio da sua obra, Brennand faz uma interferência no nosso jeito de olhar. Ele questiona o sentido de grandeza, num jogo de aparente simplicidade, onde expõe a complexa cosmologia que o anima a fazer arte. A deificação do barro resultante de magníficos exemplares cerâmicos quebra as leis do tempo e da forma. Brennand diz com sua obra que somos maiores do que o nosso cotidiano. E isso é bom de ouvir das suas peças, mesmo daquelas em dolorosa contorção.
A Oficina Brennand é um enunciado e ao mesmo tempo uma provocação para quem está disposto a sair da passividade causada pela obsessão contemporânea pela ascensão profissional a qualquer custo e pelas conquistas individuais da solidão vitoriosa. Na combinação da arquitetura com a arte, o trabalho de Francisco Brennand apresenta largueza e transparência em fixação do aleatório. A excitação das peças paradas sugere imagens que se metabolizam entre si, a fim de produzirem em nós novas formas de pensar. É o lado físico da arte como discurso da realidade oculta. Não é por menos que na saída uma placa de cerâmica resume em latim o sentido de tudo isso: “Immotus nec iners” (Imóvel, mas não inerte).
Brennand deixa clara a sua crença de que os objetos não estão mudos. Peça por peça eles indicam ausências. As figuras revelam dores da condição humana e denunciam frustrações da expectativa de simples funcionalidade. Por isso, a Oficina Brennand é um espaço de circunspeção de sentidos e uma causadora de necessárias interrogações. O impacto escancarado do conjunto de arte em cerâmica, disposto naquela antiga olaria, levou a indagações de quais as impressões sobre o uso artístico do barro que se tem antes de conhecer aquele lugar. O museu vivo e aberto de Brennand é uma oportunidade de alteração de parâmetros de desconstrução que pode se tornar ato de mudança no cotidiano de quem o aprecia.
Na Oficina Brennand os objetos são os atores, mesmo que todos estejam hipoteticamente parados. É a nossa postura diante da arte que evidencia a irracionalidade cotidiana. Nesse encontro dá para começarmos a criar suposições entre sujeito e objeto. Ficam aquelas peças todas as nos olhar, como se estivessem nos convidando a perceber que também somos de barro. Ao ser estabelecida essa troca de impressões e sensações, cabe-nos refletir o que sentem aqueles objetos de arte ao nos receberem. Seríamos os seus equivalentes do outro lado da matéria? Saí dali com a desconfiança de que a arte nos vê como se pensasse algo de nós. Foi inquietante, é inquietante.