A cearensidade criativa e fazedora foi amplamente exaltada no concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), realizado sábado (7) e domingo (8) no Theatro José de Alencar, como parte das comemorações dos 85 anos do Grupo J.Macêdo, empresa que, a partir de Fortaleza, tornou-se referência brasileira no setor de alimentos derivados de trigo, sem esquecer de reverenciar suas raízes cearenses e nordestinas, fincadas no território do futuro.

A OSESP que se viu e ouviu no TJA é fruto do desejo e do trabalho incansável do maestro cearense Eleazar de Carvalho (1912 – 1996), que, com o apoio de outros idealistas da música erudita brasileira, elevou-a ao mesmo padrão das grandes orquestras que ele havia regido em sua extraordinária carreira internacional.

O concerto foi aberto com a peça O Guarani, de Carlos Gomes (1836 – 1896), obra inspirada no romance histórico homônimo do escritor cearense José de Alencar (1829 – 1877), e encerrado com O Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos (1887 – 1959), compositor que teve a estreia de sua obra referendada publicamente pelo maestro cearense Alberto Nepomuceno (1864 – 1920), o qual o incentivou a buscar uma linguagem musical essencialmente brasileira.

Ao incluir a Série Brasileira (1891) de Nepomuceno no repertório desse concerto em Fortaleza, com suas flautas, oboés, clarinetes, fagotes, trompas, trompetes, trombones, tuba, tímpanos, percussão, harpa, cordas e a batuta do maestro Wagner Polistchuk, a OSESP fez ressoar uma oportunidade para se repensar em como o Ceará poderia valorizar efetivamente a sua personalidade musical mais importante.

OSESP executa a peça Batuque, de Alberto Nepomuceno, no Theatro José de Alencar, em Fortaleza. Foto: Flávio Paiva (07/09/2024).

Batuque, o quatro movimento da Série, é uma composição que, no mínimo, deveria ser executada a cada dia 25 de março, como um hino da data magna da “Terra da Luz”, expressão associada ao Ceará por ter abolido a escravidão em 1884, quatro anos antes do restante do Brasil. Inicialmente criada como Dança de Negros (1887), foi no Clube Iracema, em Fortaleza, que, em 08/05/1888, Alberto Nepomuceno fez a estreia de Batuque, em um recital de piano, poucos dias antes do 13 de Maio, quando se formalizou em papel a libertação dos escravizados no Brasil.

Nepomuceno era um agitador cultural abolicionista e republicano, um visionário insurgente que enfrentou as estruturas do seu tempo, criando as bases para a aceitação das manifestações populares no que viria a ser a música plural brasileira. Ao levar os sons dos tambores africanos para a sala de concerto, foi acusado de tratar a “selvageria” como música, mas, mesmo diante de tantos preconceitos, conseguiu dar contribuições relevantes na construção da cultura musical multiétnica do Brasil.

Dez anos atrás (2014), na passagem dos 150 anos do nascimento do maestro cearense, juntei-me ao músico paulistano André Magalhães e à cantora guineana Fanta Konatê e fizemos uma letra em português e em malinkê para Dança de Negros – Batuque, gravada por ela e pela Banda Dona Zefinha como parte das ilustrações musicais do meu livro Invocado (Armazém da Cultura). Nessa letra, procuramos realçar a voz de pessoas que, mesmo escravizadas e trazidas de diferentes culturas da África, tinham no tambor uma linguagem comum.

Desse modo, entre as múltiplas perspectivas históricas e culturais abertas por esse concerto da OSESP em Fortaleza, está a do Batuque como música de referência de um Ceará inquieto e transformador.

Fonte
Jornal O POVO