A paixão segundo Regina Machado
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8

Terça-feira, 13 de Junho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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Quando se fala de paixão vem logo a idéia de um impulso emotivo capaz de driblar a lucidez mediadora da razão. Um afeto cego. Uma força desejante que mistura prazer e dor. Um tema nada fácil de tratar sem o risco do vulgarismo. Regina Machado, 35, ousou e acertou no conteúdo e na forma de “Sobre a paixão”, seu disco de estréia. Recorreu a um quarteto de cordas, percussão e violão para evidenciar os nexos entre o erudito e o popular, concebendo assim um jeito especialmente particular de expor seu modo de encarar esse misterioso sentimento humano.

A unidade do CD conta ainda com a confluência dos devaneios da intuição com o senso prático da experiência. A autora é graduada em música e tem uma escola especializada em canto. Esses atributos de foco possibilitaram-na vaguear sobre a paixão longe do sentimentalismo excessivo e açucarado. O tema flui sem muito drama, passando faixa a faixa longe das hierarquias estéticas. Guerra Peixe, Schumann, Chico Buarque, Caetano Veloso, composições próprias e em parceria com Sílvia Ferreira, formam a base da substância de sonoridade camerística adornada pelos arranjos de Mário Manga.

A paixão, segundo Regina Machado, tem requinte e pureza. A intensidade do seu calor é de quem sabe fitar o mar ao sabor das carícias do vento. Sem aflição. Levitando e aprumando o cerne para se dar. Está na menina distraída, no amor de poeta, na importância do toque, na pele, no beijo e na nostalgia manhosa que afaga o coração. Satisfação que se manifesta por completitude, pela existência do outro, pela espontaneidade mais primitiva do querer. A orquestração de câmara oxigena a aspiração dos encantos da lua para, em sua claridade imperfeita, encontrar o amor que se foi, que já vem, que vai partir, que vai chegar, que não sabe onde está. “Além do amar”, dentro de si.

Os ingredientes da paixão espalham-se pelas palavras, linhas, entrelinhas, versos, melodias e tons das onze canções que formam o repertório do disco de Regina Machado. Quando canta que “o som da cidade inventa / alimenta o coração”, ela exprime ainda a paixão pelo lugar, pelo barulho que acalanta, pelo que a faz paulistana. Ao mesmo tempo, rompe fronteiras e, apaixonada, reverencia o enigma da voz. “A canção é mais do que um dom / desata os nós / reúne a gente de todos os cantos”. Eis a síntese da sua procura, o ponto de equilíbrio da sua linguagem musical.

O alcance estético de “Sobre a paixão” reforça a necessidade de conhecermos mais e mais o tanto que o Brasil tem de musicalidade criativa, com acesso extremamente restrito. Obras, como esta de Regina Machado, rompem os limites da aparência e mantém acesa a esperança da inversão no reconhecimento de valores culturais, em um país onde o artifício vale mais do que a arte e esse endeusamento da mercadoria contamina a percepção de uma sociedade cada vez mais sem referências. No meio dos destroços, essas sementes afloram e atiçam a nossa paixão pela música.