A partida abstrata e lírica de Estrigas
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 08 de outubro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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No livro “Os irmãos coração de leão”, de Astrid Lindgren (1907 – 2002), os protagonistas transitam entre a vida, a morte e a vida, numa aventurosa evolução de experiências pelas fronteiras de Nangiyala, Nangilima, enfim, de lugares fora do tempo. Assim, como os anti-heróis da escritora sueca, o casal Estrigas (1919 – 2014) e Nice (1921 – 2013) passou pelo território das artes plásticas sublimando o viver como um destino pulsional.

O princípio da satisfação do ato da criação artística, com interdependência ativa, estava na medida da existência, tanto para o ritmo da agitação generosa dela, quanto para a quietude instigada dele. Cultivadores de amizades fraternas e como sujeitos estéticos, Nice e Estrigas sempre demonstraram saber onde estava o eu e o isso no processo da vida cotidiana como projeção da espiritualidade da arte.

Na noite do falecimento da Nice, ele ainda não tinha dormido quando chegamos à casa-museu do Mondubim para dar a dura notícia. Sentados no banco do alpendre, o Dr. Osvaldo, a escritora Ângela Gutierrez e eu ouvimos por alguns instantes a sabedoria do seu silêncio e, em seguida, uma curta e pensativa afirmação: “Agora vamos ver como nos adaptar à nova situação”. Naquele momento, senti a força do dom da sua lucidez ante a sagração da vida.

E ele começou a pintar a transição entre a partida dela e a dele. No sétimo dia sem a presença física da sua amada, o Estrigas entrou pela noite arrumando a sala onde estão dispostos alguns trabalhos que representam as diversas fases artísticas da Nice. No dia seguinte pela manhã, quando a Andréa e eu fomos visitá-lo, ele abriu a cortina de búzios que dá acesso à sala e disse: “Enquanto vocês foram à missa eu estava preparando o altar da Nice”. No centro da parede, rodeada de quadros, uma foto bem grande dela e, logo abaixo, uma das lindas blusas que ela bordou.

Uma característica do Estrigas era a de deixar a criatividade se manifestar por si mesma quando colocava na tela o que o sensibilizava. Com relação à sua partida, ele não fez diferente: saiu aplicando cores onde mais lhe agradava. À sobrinha-neta, Rachel Gadelha, que é produtora cultural, entregou as chaves da casa-museu para que lhe dê permanência, e a alguns amigos ofertou sementes do pé de baobá, que plantou há 45 anos com a Nice, para a semeadura da árvore que escolheu para acolher suas cinzas.

Durante essa travessia entre a margem da partida da Nice e a margem que queria chegar para também partir, Estrigas descobriu que estava com um câncer. Optou com sabedoria por conviver com a doença sem precisar se submeter às incômodas quimioterapias ou correr o risco de morrer entre as paredes frias dos hospitais. Ele tinha uma casa rodeada de jardim e uma família rodeada de amigos. Escolheu, então, ser cuidado por sua enteada Lourdinha, pela neta Patrícia e pelo marido dela, Maurílio, que, por sua vez, contou ainda com sua irmã Léo.

Quando fez um ano da morte da Nice, ele chamou a mim, a Andréa e a Lourdinha e, sentado no sofá da sala, nos informou da sua decisão de se despedir com tranquilidade. Disse que só queria comodidade nessa reta final. Definiu a data de 19/09/2014, dia que faria 95 anos, como a outra margem do rio do tempo. Até lá, concluiria a sua despedida. Lembrei-me que um dia havia perguntado a ele o que é a estética da vida, no que ele me respondera que é tudo o que nos dá transcendência na condução do tempo.

Sempre disposto a valorizar ao máximo o que mais se aproxima da realidade das coisas, Estrigas pintou vinte aquarelas para sua exposição de despedida, e mais algumas para presentear amigos, um gesto típico do seu relacionamento amoroso. Concluiu em 2014 um livro que havia iniciado em 2011 e 2013, com reflexões estéticas e no qual procurou tratar dos sinais que o teriam levado a ser artista, que chamou de “Hoje e o Tempo e O Encontro com as Lembranças”, obra que confiou a mim a feitura do prefácio e ao professor Geraldo Jesuíno o projeto gráfico.

Fiz a leitura dos originais de uma só tirada e escrevi o prefácio no mesmo ritmo. Aquele choque entre o gesto de partida e, ao mesmo tempo, de eternização de vínculos chamou a minha atenção para o que a obra tem de virtuosa formalização do encerramento de um ciclo de vida. Coloquei o título “Escritos de despedida” e pedi a Lourdinha para ler para ele antes de enviar para publicação. Muitas revelações me tocaram nesse livro, mas nada como a convicção do Estrigas de que, assim como “o lugar da arte é a própria obra de arte” o lugar da vida é a própria vida.

Já como uma ação cultural conduzida pela Rachel, e graças ao apoio do Sesc-Iracema, a última exposição e o último livro do Estrigas estavam prontos no dia do seu aniversário de 95 anos. Menos de duas semanas depois do evento ele partiu. Quando a Andréa e eu chegamos à casa da Lourdinha, na Vila Manoel Sátiro, onde ele tinha recebido afetuosos cuidados nos últimos dias, encontramos o seu corpo em uma encantadora experiência estética, num quarto de temperatura suave como as telas que ele pintou.