A primavera de Bia Bedran
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 17 de Março de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Tempos atrás a compositora e contadora de histórias Bia Bedran escreveu um livro intitulado “Cabeça de Vento” (Nova Fronteira, 2003). É a história de um menino que ao ser chamado assim “encasquetou” e tratou de descobrir se isso era bom ou ruim. Descobriu que a infância e o vento têm muito em comum porque ambos gostam de viver em movimento. Sem contar que, dentre outras coisas, o vento espalha sementes, plantando árvores enormes e lindas flores, boas para subir e para colorir o dia.
E não é que “Cabeça de Vento” acaba de dar nome ao novo DVD com o qual a Bia homenageia todas as pessoas que criam e que compartilham sua arte inventiva com os outros! É primavera no jardim da música e da contação de histórias porque esse trabalho tem flora e fauna nas palavras e nas notas musicais, refazendo percursos, recriando sensações e traduzindo sentimentos, emoções e sentido de ludicidade.
Gravado em 2010 no teatro do Sesi, no Rio de Janeiro, esse DVD é uma obra transetária que sai dos limites do palco e da tela para encontrar o espectador onde quer que ele esteja no tempo e no espaço. É arte testada por toda uma experiência de vida e realizações, que confere à artista a condição de saber o significado do fazer e do que faz. Embora produzido com poucos recursos, o trabalho empolga por guardar em sua essência o incrível acolhimento das obras integrais.
Bia Bedran abre as janelas do audiovisual para mostrar a poética do seu ser, cantando, contando e tocando violão, acompanhada por uma banda formada por Ricardo Pacheco (teclados e programação), Paulão Meneses (percuteria) e
Guilherme Bedran (violino, bandolim e vocal). O DVD “Cabeça de Vento”, produzido por Maurício Ribeiro, ainda não começou a ser distribuído, mas já pode ser adquirido pelos correios (contato@biabedran.com.br). É um bom presente para as crianças, cuja consciência musical tem sido formada por uma noção de arte como simples produto comercial utilitário.
Com um repertório cheio de composições e histórias antológicas de autoria da Bia ou adaptadas por ela, o DVD reúne temas de grande importância para a cultura da infância na atualidade.
Em “Ciranda do Anel”, Bia Bedran canta a história da menina que perde o anel no mar e fica imaginando se ele foi parar no dedo da sereia, na goela da baleia ou se um pescador o encontrou e deu ao seu amor; mas o mar, generoso, dá a ela uma concha de presente. Na música “Quintal”, a cantora fala do renascer de uma infância que volta a poder andar solta no mato, a procurar tesouros, a voar que nem passarinho e a brincar com saci pererê.
O movimento segue com “O Trem” que “vai por aí piuí, piuí”, apitando em fantasia de café com pão, e passa por “Pedalinho”, o brinquedo que leva a criança a singrar devagarinho pelos agradáveis caminhos das águas. Já “Dona Árvore” é uma construção de “Tronco, folhas, galhos tem, fruta, flor e raiz” (…) “Subir, subir, vamos subir”, enquanto “Tudo azul” encerra o DVD na comunhão entre cultura e natureza: “Seremos mais, muito mais / A semear a paz / Entre plantas, homens e animais”.
A arte de Bia faz festa no terreiro das palavras, dos sons e do teatro. A música “Macaquinho”, inspirada em uma história do escritor mineiro Simões Coelho, comove pela forma como o boneco é manipulado e pelos recursos a que o personagem recorre para obter a atenção do pai. Riqueza cênica também realçada na história do Neco e da Neca, cheia de amor ardente, esfarrapante, “à flor do pano”, como diz a canção “Flor do Mamulengo”, do compositor cearense Luís Fidelis, gravada originalmente por Abidoral Jamacaru.
Cada música, cada história, cada gesto no palco, se diferencia em um espetáculo sem simplificações forçadas para impor qualquer compreensão. Quando ela canta a música “Videotinha”, uma crítica aos adultos que submetem às crianças à pedagogia das telas, ela faz isso simplesmente simulando o formato da telinha numa dança de braços e mãos. É o que ocorre também na narrativa do conto popular “O Pescador, o Anel e o Rei”, no qual a dramaticidade reforça naturalmente o incômodo do soberano diante da fé do pescador que gostava de cantar: “Viva Deus e ninguém mais / Quando Deus não quer / Ninguém nada faz”.
E assim, o DVD “Cabeça de Vento” oferece quinze diferentes exercícios do olhar, na relação do lúdico com crianças, adultos, seres fantásticos, com o tempo e os objetos. Nesse aspecto, vale destacar ainda a música da “Boneca de lata” que bateu com a cabeça no chão e deu o maior trabalho para fazer a arrumação. “Desamassa aqui / desamassa ali / pra ficar boa”. Não posso deixar de realçar também “As Caveiras”, um roque de divertido pavor, marcado pelas batidas do relógio e pela dança das caveiras em seus passeios fora das tumbas, quando elas aproveitam para pintar as unhas, imitar chinês, tirar retrato, jogar xadrez, comer biscoitos e pastéis: “Tumbalacatum tumbalacatá”.
Bia Bedran é uma meticulosa artesã da cultura musical brasileira. Desperta interesse com sua narrativa bem modulada e com seu canto cheio de paisagens que têm cheiro de infância. No DVD pode-se ver e rever como seu corpo se expressa com pressa ou sem pressa, em um tempo para cada tempo das notas musicais e das palavras, conforme a força de cada história e de cada canção.
No universo da MPB Infantil ela é a artista mais querida pelas crianças. A meninada a abraça com encanto porque percebe que além da cantora e da contadora de histórias estão abraçando um coração bom, uma alma boa. O que mais distingue a personalidade cativante e o trabalho da Bia é a leveza, a pureza, o respeito ao outro, o algo a dizer e a brasilidade que ela carrega em si e no que faz. A autora do “Cabeça de Vento” tem a capacidade de querer dos que querem e têm a coragem de colocar em movimento os seus sentimentos mais sublimes, tornando-os fecundos.
Por isso ela nunca perdeu a estação das flores e das cores. Bia sempre parece atenta ao fato de que a primavera vem entre o inverno e o verão. Mesmo que no Brasil o descaso com a arte para crianças ainda balance os arbustos do direito às criações de qualidade para derrubar-lhes as pétalas mais belas, a obra de Bia Bedran permanece convidando a criança para um passeio na sua natureza interior e exterior.
O excelente repertório registrado no DVD “Cabeça de Vento” mostra bem o quanto temos de preciosidades nessas experiências que vivem perguntas e que vivem respostas, despertando perguntas e respostas em crianças e adultos. O vínculo da música com a contação de histórias é um estímulo a mais, resultante da sinergia desses dois recursos de linguagem existentes desde que o ser humano se deu por gente.
No DVD, Bia Bedran aproveita para mostrar alguns livros por onde as suas histórias e canções se mexem, olhando pelos cantos das páginas e espiando o leitor como quem não renuncia a transmissão de ensinamentos, mas não se apega a isso. Além da mensagem levada ao palco está a arte que diverte e o humor que aproxima pelo essencial. A artista entrega ao público a sua fantasia para em forma de palavra se vestir de som e, como som, mergulhar na palavra.
Tudo isso acontece no espetáculo que foi filmado. Como olhar não é o mesmo que ver, nem escutar é o mesmo que ouvir, essa “cabeça de vento” chamada Bia Bedran calibra com vivência incomum a sua proximidade com o público. Por ser uma pessoa cantando e contando para outra pessoa, todos se encontram no mesmo enredo, num envolvimento simbiótico de manifestação verbal, sonora e cênica.