A revolução pela leitura
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 22 de Novembro de 2007 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A história da humanidade está cheia de exemplos de governantes que proibiram livros, que ordenaram a queima de livros e que temeram a força transformadora do livro. Esse é um drama que tem registro nos regimes totalitários em todo o mundo. Os livros abrem as mentes e agitam os sentimentos mais ardentes das pessoas. Não é por menos que os políticos inseguros os vêem como perigosos. A leitura torna o indivíduo um sujeito capaz de traçar e construir novos destinos.
No Ceará estamos vivendo uma experiência ímpar de inversão da lógica fechada dos regimes autoritários. A movimentação da Secretaria de Estado da Cultura para municiar as bibliotecas públicas municipais com 3,5 milhões de livros e periódicos demonstra a disposição do governador Cid Gomes no fortalecimento de uma cultura da participação. A primeira leva de 120 mil títulos está prevista para ser adquirida até o final do ano e atenderá inicialmente a dez bibliotecas municipais e à Biblioteca Menezes Pimentel, que fez 140 anos de existência neste ano de 2007.
Desde que anunciou a sua política revolucionária de fazer do Ceará uma sociedade de leitores que, pelo que se sabe, o secretário Auto Filho não pára de receber solicitações de bibliotecas municipais, escolares e comunitárias. O anúncio de uma política pública de popularização do livro destravou um desejo contido que estava represado na dúvida e no receio de se falar em leitura quando o senso dominante sempre procurou vulgarizar as estatísticas de que somos uma gente analfabeta.
O livro nos dá a oportunidade de pensar livremente e de refletir nossas atitudes diante da vida. Ter o domínio da leitura representa encontrar no mundo a compreensão de si. Página após página o leitor sedimenta percepções do que lê, do que deduz, do que imagina e do que se refere às causas distantes e próximas que afetam o seu cotidiano. Ler, mais do que ato prazeroso, é uam forma de aprender a olhar, de perceber o mundo e suas conexões, para agir mais livremente na realidade objetiva.
O cronograma da Secult indica que até o final do primeiro semestre de 2008 o Estado já terá adquirido cerca de 300 mil livros. Mas a pressão social por livros não vem somente dos municípios e das escolas públicas. O fortalecimento do poder civil na vida brasileira exige que o Estado dê atenção também às bibliotecas comunitárias, que se estima em mais de 500 distribuídas por bairros, distritos e assentamentos de todas as regiões do Ceará.
Na perspectiva de atender a essa demanda a Secretaria de Cultura está se preparando para lançar em janeiro próximo uma campanha que deverá receber o sugestivo nome de “A doação que liberta”, por ser considerada uma ação suplementar à extraordinária ação de inclusão econômica do Bolsa Família, realizada pelo governo federal. Por meio dessa campanha de arrecadação de livros e periódicos, a Secult almeja conseguir em torno de um milhão de obras para repassar às bibliotecas comunitárias.
Esse será um momento muito especial para a cidadania cearense, pois, para se realizar essa campanha depende de intensa mobilização social. As bibliotecas comunitárias demonstram que a sede e a fome de livro está presente nas mais indistintas localidades e se manifestam normalmente por meio de pequenas bibliotecas montadas por idealismo e espírito de solidariedade. O sucesso dessa campanha vai depender muito da participação das pessoas, das empresas e das organizações não-governamentais.
Doar livros é uma atitude sublime que engrandece quem oferece sem, no entanto, humilhar quem recebe. Pelo contrário, quem dá um livro de presente está declarando respeito e afirmando que acredita no potencial do outro. Afinal, um livro é um emulador. A significação é sempre múltipla nas obras literárias e possibilita a articulação entre o texto e a realidade, entre a ficção e o mundo possível. A leitura é uma espécie de projeção com a qual o leitor entra no universo desenhado pelo autor para se encontrar consigo mesmo e com o que o cerca.
Em um país marcado pela exclusão é comum ouvir dizer que quem vem de baixo só ascende socialmente quando consegue ser jogador de futebol ou artista famoso. A afirmativa tem um fundo de verdade, mas essa é só uma parte da missa. Se observarmos bem, a nossa mobilidade social se dá mesmo é por meio dos livros. A literatura é a mais influente forma de construção da compreensão do mundo, de forma libertária e transformadora.
A formação de uma sociedade de leitores é a preparação para o auto-entendimento, para a inquietação diante da realidade, para despertar a importância da interpretação e da transmissão do olhar. O próprio secretário Auto Filho é uma cria dos livros. Não fosse pela leitura não teria se tornado o influente e dinâmico intelectual que é hoje. Talvez a sua determinação, o seu empenho em querer equipar as bibliotecas e fazer circular livros venha do fato de ser ele testemunho da força transformadora do livro.
Em uma palestra realizada recentemente na nova Biblioteca de Alexandria, no Egito, o escritor italiano Umberto Eco defendeu que as bibliotecas continuam sendo o cérebro universal, onde a humanidade pode reaver o que esqueceu e descobrir o que ainda não sabe. Para ele, mesmo que os arquivos digitais facilitem o armazenamento e a transmissão de informações, a cultura do livro deve ser preservada, como quem guarda relíquias fundamentais à compreensão das civilizações.
As mudanças por que passam as formas de leitura não alteram a importância do seu sentido. Neste aspecto, Eco é um otimista e acredita no futuro do livro impresso e no eu poder transformador. Ele reconhece que a rede mundial de computadores tem difundido uma nova forma de letramento, mas diz que ela é incapaz de satisfazer necessidades tais como a de se recostar confortavelmente em uma poltrona, deitar na cama, na rede e ler um livro, um jornal. Além disso, realçou em sua fala, os livros são mais resistentes a impactos, mais duráveis do que o suporte magnético e não são afetados por escassez de energia.
Umberto Eco é taxativo ao dizer que a comunicação por Internet viaja à nossa frente enquanto os livros viajam conosco e à nossa velocidade. Para ele, os livros pertencem a uma classe de instrumentos que, uma vez inventados, não precisaram mais ser aprimorados por estarem bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura. O autor do romance “O Nome da Rosa” propugna que o livro é indispensável para alcançarmos uma condição mais elevada de liberdade intelectual e moral.
Na literatura, o leitor sente que os acontecimentos se passam de forma independente dos seus desejos e isso o faz agir em seu próprio mundo para que, nele, o destino se realize com a sua interferência. Essa força instigadora faz do livro um multiplicador de fecundas possibilidades. O papel histórico dos indivíduos autoriza a si próprio uma posição no interior de um sistema, no qual a produção de símbolos é determinante no comportamento social. É a síntese que faz o antropólogo estadunidense Marshall Sahlins ao precisar que “foram os valores simbólicos, e não a genética, que determinaram a evolução do Homo Sapiens” (FSP, caderno Mais, 18/11/2007).
É por esse prisma de superação que antevejo com esperança o impacto positivamente transformador sobre a nossa sociedade a ser causado por essa revolução do livro. A dinamização do Sistema de Bibliotecas Públicas Municipais e do Sistema de Bibliotecas Escolares, acrescida da criação do Sistema de Bibliotecas Comunitárias, da capacitação sistemática e da utilização de ilhas digitais para o incentivo à leitura e à pesquisa, é uma tarefa de toda a sociedade consciente da máxima lobatiana de que “um país se faz com homens e livros”; expressão que, espirituosamente, o secretário Auto Filho atualizou para “com homens, mulheres e livros”.