A sã vocação de Abidoral
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 05 de Março de 2009 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Passei em frente ao prédio em que eu morava e deu vontade de perguntar na portaria se havia alguma correspondência. Pois não é que estava lá um pequeno envelope com um CD do Abidoral Jamacaru, com carimbo dos correios datado de novembro do ano passado ! Agradável surpresa. Ao chegar em casa, armei a rede e fui escutar as novas desse compositor caririense e universal como gosto de escutar música, deitado, em silêncio.
O que há de maravilhoso em Abidoral é que ele é um artista único, com narrativa sem palavras inúteis, sem silêncio que não seja para dizer que podemos pensar alto. Escuto o seu trabalho sem procurar dissecar gêneros musicais nem reduzi-lo a análises das fichas técnicas do seu canto, apenas aceitando que ele não tem pressa alguma até mesmo em suas urgências.
É que Abidoral não é apenas um cantautor. Ele sempre me pareceu uma espécie de pássaro com asas de energia solar, com um quê de réptil alado, que saiu do mar que há milhões de anos banhava o vale do Cariri para sobrevoar a Chapada do Araripe em busca de horizontes perdidos para além da pós-modernidade.
A música, a poética e a força artística que expressa em sua obra também não parece recomendar separação de tempo e espaço em sua vida. Ele é. Simplesmente é. O que é. Inteiro em seu vigor e fragilidade e pleno em seu poder de ser sensível. Apenas ser torna o artista mais intenso do que qualquer representação que assume o papel do real.
Em qual história Abidoral estaria? Ele tem os elementos de muitos lugares, de muitas gentes, de muitas lendas. O que ele conta, o que canta, revela percursos duradouros de uma cultura que vara os anos por trilhas invisíveis, que acontecem sendo ou não vistas, sendo ou não reconhecidas.
Abidoral canta como se estivesse sozinho, mas sabendo que na mata tem outros pássaros. A sensação que dá ao escutar o seu disco é que ele está no alto da árvore mais alta da Chapada, com os olhos fixos nas nuvens, ajudando a tecer as manhãs de sonoridades silvestres. Acontecendo, porque acontecer é mais importante do que ser classificado.
Como dá contentamento ouvir um artista verdadeiro, um artista da natureza e não apenas da cultura. Sua composição faz parte mesmo é da paisagem e não somente dos palcos e dos estúdios. Relaciona-se com o mundo pela organicidade dos seus elementos constitutivos. Faz isso onde estiver, pois existe dentro e à parte da realidade percebida.
Música por música, vou escutando o novo trabalho, intitulado Bárbara, um aceno afetivo do autor a Bárbara de Alencar (1765 – 1832), heroína da Confederação do Equador, movimento nordestino antimonarquista do século XIX. Dona Bárbara tem a força dramática da Senhora Carrar, personagem brechtiniana da Guerra Civil Espanhola, que pega nos fuzis por amor aos filhos.
Em “Discurso”, velha composição que um dia Abidoral me pediu para mostrar à Cássia Eller (1962 – 2001) e ela quase gravou, ele arrepia diante da prepotência e escarra na retórica dos que pensam que os outros não pensam: “Você me acua e eu lhe mostro os dentes”. Eu tinha uma esperança de ver essa música gravada porque ela é muito forte e muito bonita. Ei-la, finalmente, diante dos meus ouvidos, com direção musical do lendário guitarrista Lifanco.
Cheio de metáforas, por ser também uma delas, Abidoral diz que descobriu que uma vida tem mistério nas histórias que ouviu da cor de uma romã. Ele gosta das cores e gosta de acordar sereno porque, diz isso em uma velha composição, que “a cor mais bonita é bem cedo”. Com figura extraordinária ele se descreve no poemário do cotidiano sob o céu que “é redoma da terra” e se faz tão regional quanto o fabulista Esopo (620 – 560 aC).
Fico sempre muito contente quando tenho a oportunidade de apreciar obras que não fazem esforços para expressar que são frutos da habilidade, do talento e da emoção honesta de que as produz. Abidoral Jamacaru gorjeia e esse gorjear define a sua personalidade artística. A literalidade integral com que chega à percepção de quem está aberto a percebê-lo é testemunha de que ele não é apenas um músico.
Os sons que saem do disco de Abidoral anunciam um achado, um enxuí com mel de uma florada rara de arte pura. Escutá-los é experienciar uma rica interpretação da simplicidade de viver desaguando na biologia sonora pouco observada pelos olhos áridos de uma sociedade que vem perdendo a tolerância para manifestações férteis de originalidade. A fragilidade da volúpia consumista não permite que se escute além da música, que se escute a força vital que a faz existir.
A gente enxerga a natureza no canto de Abidoral porque ele tem os atributos cristalinos das águas de nascente. Se jogado nas poças toldadas da competição fonográfica, entra em desaparição. E na água turva não dá para a gente se vê. Não se trata, portanto, de um canto forçado à conformidade da razão, mas à liberdade da paixão. É um canto poético, daqueles que não aceitam mudar o que são apenas para satisfazer os ditames da ordem do mundo, que não deixam de ser, por pressão de sua época.
Conheço o Abidoral há muitos anos. Desde que passei a morar em Fortaleza. E lá se vão mais de três décadas. Temos duas parcerias, uma, “Estrelas Riscantes”, gravada por ele no disco “O Peixe” (1998), e outra, “E se a gente for para o recreio com uma bola bem colorida?”, interpretada pelo Marcelo Pretto no CD que acompanha o meu livro “A Festa do Saci”. Nesse tempo todo aprendi a admirá-lo por sua vinculação intrínseca com a natureza.
Os altos e baixos da rotina nunca afetaram a sua conformidade com o mundo natural. Abidoral está permanentemente com ar de quem está ciente de que ninguém nem nada pode lhe tirar a vontade de cantar, seus movimentos, suas inclinações. Flui no tempo como um pássaro que cruza o céu à nossa frente e depois não mais o vemos. Mas ele segue voando e é bonito vê-lo reaparecer.
Vai e volta, tem simpatia universal, mas ama o seu lugar, os jardins que cuidou, as flores, as amizades. Essa condição não lhe deixa espantado com nada. Abidoral é o típico cidadão livre, aquele que vive sob a orientação da liberdade de viver, desligado do apego ao desnecessário, ao que não encanta. Movimenta-se em um campo aberto de saber, de sentimento criativo, no qual a solidão vira música, a alegria vira música, a indignação vira música.
Desde o elepê “Avallon” (1986), quando a cena da música plural brasileira conheceu “Flor do Mamulengo” (Luis Fidelis), que Abidoral Jamacaru mostrou que mesmo fixando sua obra em fonogramas, manteria soltas as amarras da rotina pelas flores-de-seda da imaginação. E continua com esse espírito de pluma em “Bárbara” (2008), levando sementes aos campos da mente, como diz a canção “Bandoleiro”, de Luli e Lucina.
Quem canta dá um sinal. A vida social da natureza é uma rede de sinais emitidos para dizerem coisas, para encantar, para assustar, para avisar que vale a pena viver. Dos sinais luminosos dos vagalumes aos jatos de tinta dos polvos, tudo comunica a vida. E o que diz o canto de Abidoral? Identificação? Fuga? Ataque? Alerta? Jogo? Como ave, como animal, como humano, ele fala em suas mensagens que canta porque existe.
Na música “Vida”, ele sintetiza bem o que estou querendo dizer: “Coabitamos o mundo / Eu a pantera e a corsa / Tu o tatu e o guará / Ele e a acácia de cacho / Nós e o perfume da flor / Vós suspirando com vida / Eles girando na terra”. Abidoral, repito, é um ser da natureza e não somente da cultura. Como os pássaros ora canta longo e elaborado e ora faz chamados breves e simples. É corrupião e rolinha, mas é também bem-ti-vi cantando em pleno vôo.