Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 15 de Abril de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A fase experimental do uso da internet fecha um ciclo com os processos de regulação que vêm sendo estabelecidos em todo o mundo. Ao contrário das caminhadas livres pelos desertos, que quase sempre resultam na humildade do peregrino, a circulação sem freios pelas infovias revelou comportamentos de perda da consciência de que há algo além do si. Um dos exemplos mais visíveis desse deslumbre do ego na rede é a cultura do paparazzi de autofoto que se espalhou.
A caça de si próprio como celebridade presumida virou um “se clicar” em abundância, uma transferência do “ser” para escudos externos, “exomentes”, esqueletos inconscientes do si projetados fora dos rostos perambulantes espalhados pelos logradouros virtuais da internet. As redes de trocas de intimidades são verdadeiras denúncias existenciais, suportadas pela capacidade das máquinas de exibirem o “eu”, como se a vida dos outros fosse a nossa própria vida.
As comunidades dirigidas a agregados da solidão hipermoderna desvelam todo o voyeurismo instigado e explorado pelas empresas que vendem serviço de trocas virtuais com o codinome de “redes sociais”. Até aí, tudo mais ou menos bem. O problema é quando essa prática passa a envolver os outros e atinge o direito de liberdade de terceiros, com fotos de celulares no Orkut e cenas de banheiro escolar no Youtube.
Em janeiro passado fui à feira de produtos da cultura de massa japonesa, conhecida como Super Amostra Nacional de Animês (Sana), que ocorreu em Fortaleza. A movimentação mais veemente dessa convenção é a encenação para a geração de fotos, como prova de presença a ser exportada aos blogs das lan houses. Porém, mais do que esse ímpeto de transferir a relação física para a rede, chamou-me a atenção as plaquetas conduzidas pelos passeantes, com frase do tipo: “Desculpe fazer você ler, mas só estou precisando aparecer” ou “Selinho: R$ 0,50”.
É uma diversão, eu sei, e não estou defendendo ou não que ela aconteça. A ilustração da Sana tem aqui apenas a intenção de dar exemplo de como funciona esse mercado de vaidades vazias da sociedade paparazzi. A extensão desse comportamento está replicada também em outras movimentações que primam pelo exibicionismo gratuito, nas poses e gestos sensuais e nos shows de sexo na webcam. Sem parâmetros de liberdade, a situação fecundou a cafetina do “chat hostess”, que é a figura dona da estrutura de “quartos” utilizados para a exploração virtual do corpo em troca de comissão.
Todos podemos dizer que isso é natural, que não há sistemas sem essas variações hipoteticamente fora do “normal”. Está bem, como igualmente está bem que nos preocupemos com a homogeneidade dos impulsos do ego reprimido pela ausência de perspectiva de uma experiência de felicidade. O uso da câmera fotográfica do celular é um dos mais evidentes nesse hábito de não deixar muito espaço para qualquer raciocínio voltado ao futuro.
As telas com recursos fotográficos e portais de relacionamentos em rede deveriam alardear advertências semelhantes às que aparecem na comunicação mercadológica de cigarros e bebidas. Infelizmente ainda estamos em um estágio no qual necessitamos ser lembrados que ao disponibilizarmos na internet imagens íntimas, não temos mais como recuperá-las. Como está atualmente, o que é postado por credulidade ou maldade pode vir a ser inconveniente tempos depois.
Essa postura de dar permanência desnecessária ao presente pode fazer com que informações hoje consideradas apenas irreverentes venham a ser um pesadelo com o passar dos anos. Penso que todo site que possibilita o gozo paparazzi deveria ter um campo obrigatório de acesso, no qual o internauta pudesse colocar livremente a duração de visibilidade que pretende estabelecer para o conteúdo postado. Assim, as fotos mais comprometedoras da viagem com a namorada ou do vídeo da balada seriam vistos por um período e depois se autoeliminariam automaticamente.
As situações inversas também são críticas. Vejamos o caso das informações expostas na rede, que precisam de permanência assegurada: tem sido comum encontrar em bibliografias de dissertações, monografias e ensaios referências a fontes capturadas da internet, com link, data e hora de acesso. O risco nessa situação é que a página seja arbitrariamente tirada do ar pelo seu autor, mediador ou provedor e caso algum pesquisador ou curioso deseje visitar a íntegra do texto citado, isso se torna irrealizável, prejudicando sensivelmente o método científico.
É por problemas como o delírio em cliques e a omissão do direito de acesso à integralidade do pensamento que muitos países estão definindo parâmetros que facilitem a melhor utilização das tecnologias digitais. No Brasil, o Ministério da Justiça está configurando um marco legal em favor da liberdade de manifestação na rede mundial de computadores. A minuta do anteprojeto de lei que será enviado para votação no Congresso Nacional está aberta a contribuições por meio do portal www.culturadigital.br/marcocivil.
Pelo texto posto à consulta pública, nota-se que tem tudo para ser uma lei simples, equilibrada e fundada em princípios de cidadania. Como guardiã de direitos e deveres de pessoas físicas e jurídicas, para a manifestação do pensamento, o cuidado com a privacidade e a garantia da isonomia no tráfego de informações contra indivíduos e grupos usurários, criminosos ou ofensivos, a proposta do ministério é fazer valer direitos e não cerceamentos. Isso é formidável, por representar um sentido afirmativo de justiça, inspirado nas liberdades de expressão, de privacidade e de ir vir no ciberespaço.
O fato dos abusos que simbolizei como paparazzi me parece bem posto na minuta do anteprojeto com o mecanismo da “notificação e retirada”. O que isso significa? O parágrafo primeiro do artigo 20 responde: “Os provedores de serviço de internet devem oferecer de forma ostensiva ao menos um canal eletrônico dedicado ao recebimento de notificações e contranotificações”. Ou seja, quem se sentir prejudicado pode acionar os mediadores para que bloqueiem algo que considere ofensivo. Mas quem postou a informação também tem o direito de justificar a razão de ter colocado o suposto agravo no ar e optar por assumir judicialmente qualquer processo decorrente da sua decisão.
A questão da segurança das informações relativas à pesquisa científica ainda não consta no documento. Como considero esse direito de grande relevância, fiquei pensando se o Marco Civil em construção não poderia adotar duas responsabilidades para a solução do problema: a primeira, que o Estado oferecesse ou fizesse oferecer provedores capazes de armazenar as páginas dos sites citadas em bibliografias; e a segunda, que os autores ficassem formalmente imbuídos da responsabilidade de enviar aos ditos provedores, os endereços eletrônicos aos quais recorram para suas pesquisas, de modo que sejam armazenados como fonte do conhecimento e dos saberes.
Há muito que refletir sobre o Marco Legal da Internet brasileira. Temos, então, uma valiosa oportunidade de exercício da democracia participativa. Com a contribuição de quem se dispuser a ler e a sugerir propostas construtivas para os logradouros da rede, estamos no rumo certo, inclusive quanto à liberalidade constitucional que permite o anonimato, sem esquecer o IP (internet protocol) das máquinas. O raciocínio que por analogia tenho feito para me posicionar é o de que só vale a pena postar na internet aquilo que pudermos expor nas praças.