A travessia para o mundo adulto
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno3, pág.3
Quinta-feira, 22 de Dezembro de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Posso até dizer que o livro “Cavalo de Guerra”, do escrito inglês Michael Morpurgo, 68 anos, é uma mensagem que nos leva a refletir sobre conflitos militares, já que o tempo da aventura nele relatada é a Primeira Guerra Mundial. Posso até dizer ainda que se trata de uma história de amizade, considerando que, ao ser separado do garoto que é seu dono, o protagonista venceu muitos dos obstáculos que enfrentou pela força da lembrança. E posso até dizer, além disso, que a novela de Morpurgo é especialmente voltada para quem se sensibiliza com temas de animais, sobretudo os aficionados por cavalos.
Qualquer dessas perspectivas me divertiria como leitor de “Cavalo de Guerra”. A narrativa feita a partir do ponto de vista do próprio animal torna mais afável a história de como ele foi adquirido pelo exército britânico e levado para o campo de batalha francês. No entanto, o que perseguiu mais a minha atenção em toda a leitura desse livro Infantojuvenil, que a editora WMF Martins Fontes está lançando neste final de 2011, foi a simbologia do potro rebelde e seu drama vivido entre o instinto de sobrevivência e a irracionalidade traumatizante, como uma destemida travessia da juventude para o mundo adulto.
O livro com a aventura do cavalo Joey, que já virou peça de rádio e de teatro, agora chega ao cinema, numa adaptação do cineasta estadunidense, Steven Spielberg, 65 anos, com estréia no Brasil anunciada para seis de janeiro de 2012. Dá tempo, portanto, de ler o livro antes do filme e de imaginar situações de enlevo como o semblante das pessoas conversando com o cavalo, como se estivessem dialogando com a própria consciência, ou a expressão de Joey a cada efeito das duras perdas e abandonos, que sofre com as separações de Albert Narracott, do capitão Nicolls, do soldado Warren e da menina Emilie.
Pelo olhar que mais me atraiu, “Cavalo de Guerra” fala da diversidade de vínculos, em variados graus afetivos, dando sentido ao enfrentamento das adversidades, representadas pelos horrores da guerra sangrenta. Em ritmo que por vezes tangencia o desvario e testando ao máximo as possibilidades de dar a si a chance de se sentir bem em diversas circunstâncias, o destemido Joey torna-se importante para quem encontra pelo caminho e ao mesmo tempo reconhece a importância da amizade de cada um. A expectativa de afeição, que repercute no seu corpo e na sua energia psíquica, expressa uma trama existencial de juventude.
Joey é um potro impetuoso, movido a impulsos. No seu combate a desafios de toda ordem, ele faz associações que lembram a sua experiência de amizade com o menino Albert, mas sem se deixar abater por isso. Usa a lembrança em favor da superação, por sentir que tem lugar reservado no coração do seu dono verdadeiro, o que o deixa seguro e o faz ser corajoso. Mesmo passando pelo cabresto de vários proprietários, sabe a quem pertence por apego sincero. Assim, interage de peito aberto em qualquer situação, seja arando, na condição de cavalo de montaria, carregando macas com feridos para o hospital de campanha, puxando canhão ou carroça veterinária.
Joey passa pelo teste de várias identificações e toma de cada uma delas a força extra para seguir escapando das ameaças que lhe surgem a todo instante. Seus passos limitados por barreiras de incompreensões e pela impossibilidade diante da intolerância são estados próprios das travessias de adolescência, marcadas por alterações de rotina e de perspectivas. Mesmo quando teve abalado um dos seus fatores mais distintivos, que é a vitalidade, a saúde, conseguiu ser resiliente em nome de uma saudade que precisava pôr em dia. Tinha muito a compartilhar com o amigo que há muito o acompanhava apenas no silêncio da distância.
O “cavalo de guerra” tem sofrimentos físicos e psicológicos, decorrentes das contradições hiperbólicas em que se encontra. Tem também ares de contentamento nas cenas de companheirismo com o cavalo Topthorn e com Friedrich, um velho açougueiro germânico, consciente da sua aversão à guerra e, por isso, considerado o soldado louco do regimento. Friedrich confidenciou a Joey e a Topthorn que costumava falar sozinho por achar que somente ele mesmo era capaz de entender o que tinha a dizer.
A aventura de Joey é uma aventura de experiências relacionais, que ganha mais sentido em seu todo, pelo exercício da construção de vínculos. A fragilidade e a solidez das relações vão sendo definidas conforme a intensidade do relato. O “cavalo de guerra” recria-se a cada instante em pontos de tecedura narrativa que vão transpondo as fronteiras dos contextos. Mais do que ficção, o livro se atualiza na arquitetura dramática da conjuntura conflituosa da atualidade, onde proliferam incertezas e o tempo fica fechado principalmente para a travessia juvenil, rumo à idade adulta.
Para o jovem, que percebo representado em Joey, o conceito de competição é outro; a noção de agressividade é outra; e o sentido de ser vencedor é outro. Ele não é um personagem que assume sonhos estereotipados para colocar em prática; seu sonho nasce da aventura de viver e cresce no jogo das emoções, do afeto e do exercício moral. Deste modo, o “cavalo de guerra” corta o efeito esterilizante da juventude padronizada, vítima de uma pregação de conveniência de pais e educadores, que estão mais preocupados com suas vidas e ficam alardeando continuamente que o jovem deve se isolar em seus grupos de afinidades e grupos de mesma faixa etária, para poder ser autônomo.
Em trajetória contrária a essa afirmação falaciosa, o “cavalo de guerra” atua longe desses conceitos perversos, que, repito, empurram o jovem para fora da convivência social ampla, no momento em que ele mais precisa temperar a fibra em múltiplas experiências. O livro de Michael Morpurgo pode ser lido como uma obra existencial de iniciação ao mundo adulto, se lido pela ótica de que o protagonista se fortalece e se encontra consigo mesmo, a partir de vivências levadas a efeito na sua inter-relação com crianças, adultos, idosos e com outros animais.
Não há qualquer dúvida quanto à necessidade de a juventude produzir a sua própria noção de mundo. O que não dá é para fazer essa construção limitando-se apenas aos pares. A marginalização da juventude, em nome de uma suposta autonomia é uma crueldade da guerra do egoísmo social, que leva à dependência química e à violência como meios de relaxamento e de sentir emoção num mundo tedioso e vazio. “Cavalo de Guerra” mostra um caminho oposto: de maneira simples, com texto leve, o livro sugere a importância de outras oportunidades de prática da alteridade e da dialética, na batalha entre os contornos de disciplinaridade, vigor libertário e relações afetivas.
A história do “cavalo de guerra” abre espaço para uma relação muito peculiar do protagonista e do leitor para com a realidade. Na visão de Joey, a realidade é o seu ponto de partida, onde ficou o menino Albert; mas para o leitor, pode ser o ponto de chegada, para onde apontam as expectativas de quem lê. O livro começa com uma nota do autor sobre o quadro empoeirado com a pintura de um cavalo, que decora o salão comunitário de uma velha escola da área rural inglesa. A imagem é tão familiar aos moradores do vilarejo que já não chama a atenção. É daí que Michael Morpurgo parte para mostrar o contrário; mostrar que é muitas vezes nos velhos quadros quase despercebidos que estão as nossas histórias mais vibrantes e profundas.