A capacidade que tem de destruir o ambiente em que vive pode até fazer do humano um acumulador de bens desnecessários, mas isso apenas prova que inteligência sem sabedoria é uma lástima. Viver é sempre mais dignificante quando percebemos que a incrível aventura da existência tem sua mais sofisticada plenitude no prazeroso esforço de tocar a vida construindo um destino comum no fluxo sagrado do mundo.
Encontrei na lida aparentemente simples do jangadeiro uma grande metáfora para a definição da nossa atitude perante a vida: a VELA. Essa imagem me diz que pouco interessa o tamanho do mar ou a força invisível dos ventos, se todo dia é dia de pescar, dia de nos lançarmos em busca do que necessitamos e acreditamos, mesmo quando a nossa consciência precisa enfrentar correntezas contrárias do tempo social em que vivemos.
As manifestações de sonhos, crenças, desejos, vontades e aspirações tornam-se mais fecundas quando inventamos mecanismos com os quais podemos definir rotas que nos levem à realização orgânica. A alegoria da jangada em movimento, que costumo observar no mar de Fortaleza, e o tremular de sua representação na bandeira do Ceará sugerem para mim que a potência da vela simboliza também a força do livre arbítrio.
Na música VELA, que compus em parceria com Ronaldo Lopes, gravada pela cantora Nayra Costa (disponível no canal youtube.com.br/flaviopaiva59 e nas plataformas de música digital), procuramos delinear um dos campos simbólicos do progressivo cruzamento escultural desse instrumento náutico de pano em moldura de madeira e corda na definição do nosso ânimo de integrar os acontecimentos naturais e culturais planetários.
A vela significa mais do que uma peça de navegação à medida que seu manuseio requer o conhecimento de para onde o vento sopra e a sabedoria da escolha da direção a ser tomada. É no arranjo entre a determinação de ir com o mar e a decisão da rota a ser tomada sobre as ondas que, independentemente de os ventos estarem a favor ou contrários, a vela se expressa como metáfora existencial.
Raif Abillama, que foi embaixador do Líbano no Brasil entre os anos de 1958 e 1960, nos legou uma reflexão muito especial a respeito da vela. Conta o emir que certa vez, contemplando o Mar Mediterrâneo do alto das montanhas de Brumana, sua cidade natal, observou dois barcos que se deslocavam em sentidos opostos e ficou a refletir sobre o ser humano, essa criatura criativa que consegue se mover pelos oceanos tendo apenas o controle de uma simples vela.
No texto “Com as velas, e não com os ventos”, publicado na antologia “As mais belas páginas da literatura árabe” (Associação Cultural Gibran, 1973), organizada por Mansour Chalita, escritor misto de colombiano, libanês e brasileiro apaixonado pela riqueza de fundo e de forma dessa literatura, Raif Abillama deduz que o segredo da realização humana está na vela, a despeito de para onde os ventos soprem.
Ele destaca duas tendências comportamentais que temos com relação aos ventos: uma, a de procurarmos a navegação mais fácil e mais segura, deixando-nos conduzir pela corrente, mesmo que isso quase sempre nos leve ao arrependimento; outra, que requer mais esforços, sacrifícios, rejeições e perseguições, quando usamos a vela para navegar contra as forças dominantes, colhendo prontamente os frutos da luta em paz com a nossa consciência.
Os escritos de Abillama atribuem a guerra ao colonialismo, a rebelião contra os feudos, a emancipação da mulher e o estabelecimento da justiça social como exemplos de conquistas resultantes da coragem e da fé de lideranças que souberam se mover com a força dos seus próprios ideais e não seguindo o senso comum. Nesta perspectiva, pode-se dizer que as transformações e os avanços sociais só acontecem quando cuidamos da vela com a disposição de ir a algum lugar que possa ser melhor para nós, para a sociedade e para o meio ambiente.
Os graves e urgentes problemas dos tempos atuais pedem que pensemos nisso. Estamos desorientados porque deixamos nossos barcos ao sabor dos ventos. E o que nos orienta na vida são as velas e não os ventos. Molhar o pano para embarcar, como diz um dos versos da nossa composição, é o gesto de fortalecimento da vela para navegar, seja em tempo de movimentações favoráveis dos ventos, seja nas vezes em que for preciso desafiar as correntes gerais. Com a vela nos conduzimos na direção que queremos, mesmo contra o sentido do vento.
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Imagem do topo: cena do videoclipe da música VELA (Flávio Paiva / Ronaldo Lopes), com interpretação de Nayra Costa e produção musical de Gustavo Portela.