Adolescência e terceira idade
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 5
Terça-feira, 29 de Fevereiro de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
A cultura da razão dolarizada rebaixou a aspiração das pessoas no Brasil, ao ponto de passarmos a desejar um mundo permanentemente instantâneo e descartável. Completamente fora de todas as nossas aptidões. Aumentamos o estresse, o individualismo, o tamanho dos centros urbanos, o niilismo e a dependência político-econômica. Para garantir o sucesso dessa viagem trágica, fomos jogando ao mar, em segundos, o que havíamos levado muito tempo para construir. Jogamos o respeito à língua, o patrimônio estatal, o orgulho de ser brasileiro, a copa do mundo de futebol, o humor coletivo, a oportunidade de trabalhar e produzir riquezas, a força da juventude, o conhecimento dos que têm idade mais avançada… Joga que joga e o barco continua a perigo.
Esse contexto bordejante nos põe de sobreaviso e denota que está mais do que na hora de acabarmos com a exclusão etária, exigida pelas regras equivocadas que presidem a nossa vida social. Os contingentes da adolescência e da terceira idade precisam ser chamados para pegar na roda do leme. Em nome de quê os abandonamos? Razão não exclui emoção e paixão não exclui pragmatismo. A esperança de quebrar o círculo vicioso, do qual não conseguimos escapar, está na irreverência dos mais novos e na sabedoria desprezada na solidão dos aposentados. Nós, que estamos no mercado de trabalho, que estamos enquadrados no perfil econômico gerador da desigualdade, devemos procurar valorizar as idéias e o jeito de fazer as coisas dessa gente. Não há como protelar o redimensionamento dessa ordem simbólica coletiva, fundada na dinâmica alegórica do consumo.
Muitas semelhanças caracterizam as cidadãs e os cidadãos de perfis sociais condenados pela idade. São os que não integram o gráfico de qualidade e produtividade humana, estabelecido para o período entre a mesada e a aposentadoria. Parafraseando o compositor Tom Zé, no senso do modelo vigente, essas pessoas não passam de andróides ordinários, muitos deles com defeito de fabricação. Principalmente o defeito de pensar na possibilidade de um mundo diferente, conduzido a partir de valores mais justificáveis. Meio ambiente, manifestações culturais e ação comunitária, por exemplo, parecem pontos comuns aos dois grupamentos. A preservação é simpática para quem está na terceira idade, porque todo o seu patrimônio vem do passado, enquanto é também simpática aos jovens, porque toda a sua “memória’’ está no futuro.
O tempo para mobilizações é mais flexível e disponível para quem é estudante e para quem está aposentado. O estado de espírito para atuar em favor do interesse comum também é inegável. Motivados por uma causa justa, estão sempre prontos a participar. Não é à toa que muitos procuram satisfação no terceiro setor. Mas, relegados à condição de fardos inúteis, a que foram inexoravelmente condenados, ficam arredios, desconfiados e, muitas vezes, inacessíveis. A afluência da mercantilização de todos os aspectos da vida criou a parábola da impossibilidade cotidiana. Não há vagas. Alguns negócios no balcão virtual da internet animam os privilegiados da adolescência contida. A sorte na multiplicação de bingos e loterias atenua o sentido de fim para os mais velhos. Seja como for, ambos os grupos só poderão interferir na determinação do dia-seguinte se conseguirem ser inscritos nos padrões de aceitabilidade social.
Afora as tantas semelhanças entre a adolescência e a terceira idade, existem ainda as suas características complementares, boas para mover estruturas necrosadas pela ganância cega, pelo auto-engano e pela desonestidade existencial a que estamos submetidos. Verifica-se a necessidade do equilíbrio no encontro emotivo da impetuosidade com a experiência, e físico, da exterioridade com a interioridade, para a formatação da saúde natural e cultural do País. Somente o calor radiante do engajamento desses dois pólos me parece poder abrigar em si as prováveis soluções desejadas. A luz invisível, a mais quente de todas, não aparece no prisma convencional. Da mesma forma, a rebeldia e a cautela, misturadas com o arroubo juvenil e a paciência adquirida, constituem o infravermelho indispensável para desinchar a contusão produzida pelo impacto da exclusão na nossa articulação social.
Ao desprezarmos, por negligência ou intolerância, as férteis afinidades e as diferenças complementares da juventude com a terceira idade, atestamos a nossa imaturidade e contradição social. Mais do que isso, repudiamos uma interação com chance de contribuir para nos livrarmos de muitos dos valores que nos levam a tantas práticas incompatíveis com a felicidade. A exclusão é uma insensata e vergonhosa forma de proteção, que beira a crueldade nazista. Existe lugar para todos, desde que haja compreensão e compromisso para isso. Encalacrados como estamos, com medo uns dos outros e ocupados apenas em salvar a própria pele, está provado que não vale a pena. A faixa cada vez mais restrita do miolo etário, classificado como próprio para viver, tem dado provas suficientes da sua incompetência na gestão dos interesses coletivos. Por que não deixar que se acostem os botes dos mais jovens e dos mais velhos para, juntos, pensarmos o mundo que queremos? A saída não encontrada pode estar nessa alquimia. Pode estar na volta da capacidade de sonhar. E não há nada como o sonho franco para instituir a confiança e definir novos rumos.