Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 22 de Abril de 2010 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Fui convidado pela Secretaria da Cultura do Ceará (Secult) para ir ao Centro de Convenções de Fortaleza, no sábado passado (17), fazer uma palestra no IV Encontro de Agentes de Leitura, sobre um tema que mexe muito com a minha inquietação: “O exercício da leitura como cidadania”. Com mediação da professora Gabriela Farias, do Núcleo de Cultura e Mídia do Curso de Ciência da Informação (UFC), procurei disciplinar o meu entusiasmo recortando o assunto em dez dimensões.
A primeira dimensão que abordei foi o próprio “status da leitura” na atualidade. A referência de leitura está desorganizada nos dias de hoje porque a entrada do novo parâmetro de mídia escrita, advindo com os encantos eletrônicos da tecnologia de transmissão de dados e informações, passou a produzir uma sensação de vazio do essencial, que é a palavra e os seus significados. Mas o essencial não desapareceu, ele apenas perdeu-se com um grupo de interrogações que colocaram a importância do livro na ordem do dia.
Identifiquei essa situação como muito favorável e expliquei a minha posição na segunda dimensão que denominei de “os novos aliados”. As novas tecnologias aplicadas ao livro e à leitura, como os leitores eletrônicos Kindle, da Amazon, e o iPad, da Apple, precisam ser encaradas pelo que podem agregar de estímulo ao hábito de ler. Eles permitem inimagináveis sinergias de meios para a valorização da leitura. São equipamentos ainda muito incipientes, um com as limitações da tinta eletrônica e outro com os excessos da tela de luz. Ambos, porém, muito vulneráveis ao bisbilhotar dos fabricantes.
O livro continua sendo o mais independente dos meios de suporte à leitura. Tratei desse aspecto na terceira dimensão, uma “sociedade de leitores”. É curioso como, salvo em situações de ditadura, os editores conquistaram o direito de publicar pensamentos desejáveis e indesejáveis. Por isso, o livro continua sendo a mais essencial das fontes na atual competição que caracteriza o mercado de conteúdos. Tanto que as transnacionais físicas e virtuais estão comprando pequenas editoras e pequenos provedores para, por um viés político, calar o que não interessa e, por um viés comercial, ficar com a prerrogativa de dar visibilidade ao que pode mais facilmente ser lucrativo.
Acontece que existem muitas coisas na realidade que circulam independentemente dos arranjos modelados pela economia e pela política. Chamei essa dimensão de “teia cultural”, conceito que havia desenvolvido com a ajuda da psicanálise na minha coluna de 11/10/2007, neste Diário (A cultura onde a vida acontece). A literatura diz da nossa vida o que não está na objetividade do cotidiano, pois transita em pontos de sensibilidades que são capazes de escapar da trama do racional.
Tomei a liberdade de dizer que quando um Agente de Leitura faz o seu trabalho, ele está abrindo um canal de troca, no qual o autor da obra é colocado na roda. Com o título de “vivências literárias” procurei ilustrar minha admiração por essa atividade que permite às pessoas mais simples a receberem de volta muito da intimidade que os livros tomam emprestado das suas vidas. O exercício é de mediação e o produto é o próprio processo de mediar. Quem topa essa missão precisa ter paciência e respeitar os limites das pessoas que têm dúvida se vale mesmo a pena deixar de ver televisão para participar de um sarau.
Autores e contadores, referidos na dimensão seis, foram mencionados por mim como uma dupla que precisa atuar em sintonia. Antes de tudo, precisam ser pessoas dotadas de uma existência transbordante, pessoas capazes de ter realmente o que contar. E são muitas as maneiras de contar. Recorrendo a outra reflexão que fiz neste Diário, coluna de 2/4/2009 (A sintaxe da lembrança), falei das diferentes formas de contar, citando que enquanto José Saramago se pergunta se certas recordações são realmente suas, Rubem Alves faz questão de dizer que assume como dele não só as histórias que viveu, mas as que ouviu contadas por outras pessoas.
É nessa semeadura em favor da maneira de ver, de entender e de encarar a vida, que a ação dos Agentes de Leitura promove uma intervenção social que resumi como “expressão de cidadania” no recorte da sétima dimensão. A literatura descreve a realidade em um espaço próprio, nem só real, nem só imaginário, e essa realidade descrita é devolvida em possibilidades a quem lê. Quem enxerga, quem ouve é a mente e não o olho ou o ouvido. Os sentidos são sensores, mas a consciência de si e das coisas se forma pela agregação de vislumbres que ajudam o leitor a se preparar para a prática das escolhas pessoais e coletivas.
A leitura não funcional, não didatizada, é uma ótima maneira de destravar as pessoas da violência que é a passividade do dia-a-dia. Destravadas do certo e do errado, das obrigações aceitas ou rejeitadas, das pressões dos interesses predominantes da vida social, o leitor é alguém que se dá a chance de aspirar horizontes. Assim, pode romper com o bojo da exclusão sem precisar do ato violento. Designei essa oitava dimensão de “seguridade social”. Os participantes queixaram-se da dificuldade encontrada em demandas como a de leitura de livros de autoajuda e livros massificados pela mídia de consumo. Recomendei perseverança tranquila nessas horas, argumentando que as pessoas, além de não terem culpa do direcionamento de gosto a que são submetidas, precisam exercitar também o direito às suas preferências.
Provoquei os Agentes de Leitura, desafiando-os a negociar escolhas. Citei o exemplo de como resolvemos isso com os nossos filhos: lá em casa, cada qual escolhe o livro que quer para a leitura da hora de dormir, mas todos nós assumimos o compromisso de ler as obras escolhidas pelos outros. O que parece uma brincadeira é na verdade uma forma de deixar que com o tempo prevaleça o que for melhor, sem imposições. Essa combinação de estética, pedagogia e política eu chamei de “emancipação cultural”, como nona dimensão. Caminhar pelos nossos desníveis de oportunidade cultural é uma tarefa árdua, mas extremamente necessária.
A diferença da qualidade política entre um país que tem e um que não tem literatura é enorme. A literatura é a mais sofisticada das expressões humanas. Ela não exige apenas sensibilidade, talento e desejo de fazer; ela exige capacidade de recriação elaborada do existir. O trabalho dos Agentes de Leitura, e falei isso para eles ao tratar da décima dimensão, “voz na multipolaridade”, é um trabalho de grande importância, no momento em que o Brasil se afirma como um País que perdeu o medo colonial de se colocar no diálogo entre as nações. Temos muitas contribuições a dar ao mundo e só faremos isso se nos compreendermos livres para beber na fonte da impossibilidade.
No Brasil o livro nunca foi e provavelmente nunca será massificado, mas pode muito bem ser popularizado. Acredito que as nossas tiragens médias aumentarão com o advento das novas tecnologias e com o crescimento de ações de estímulo a leitura como essas praticadas pelos Agentes de Leitura. Evidente que as grandes tiragens continuarão a depender das compras oficiais e a agregação dos recursos eletrônicos em favor do leitor resultará da definição do padrão de livro digital a ser adotado pelo governo federal. Teremos novidades no mercado editorial nos próximos anos, mas poderemos evitar surpresas desagradáveis se encararmos, governo, iniciativa privada e sociedade, o exercício da leitura como cidadania.