Anti-heróis dos novos tempos
Artigo publicado no Jornal O Povo, Caderno Vida & Arte, página 8
Terça-feira, 06 de Junho de 2000 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Sem cartão de crédito, sem roupa nova, sem carro do ano, sem jóias, sem internet, sem celular, sem dólar, sem falar inglês, sem aplicar na nova economia, sem palmtop, sem poder de consumo, sem idade produtiva, sem ganância, sem ansiedade e sem pressa. De repente, diante da grandeza espiritual e do talento dos vovôs de Buena Vista, é como se tudo o que se vê como objeto de busca perdesse o valor para quem se dispõe a viver com dignidade. Com brilho estourado na tela, o filme mantém um certo distanciamento entre o diretor e a realidade, assegurando a originalidade essencial dos seus personagens, mostrando-se livre de julgamentos e de exercícios gratuitos de linguagem cinematográfica.
Em poucas palavras, o filme de Wenders é um documentário sobre o reencontro dos músicos que tocavam em uma desativada casa de espetáculos havanesa do início do século. Muitos deles há anos sem exercer qualquer atividade musical. O cineasta chegou à intimidade dos músicos da velha guarda cubana através do compositor Ry Cooder, com quem trabalhara em outras produções. Cooder tinha lançado um disco intitulado Buena Vista Social Club. Foi premiado e vendeu mais de um milhão de cópias. Estava decidido a gravar uma nova obra em Havana e convidou Wenders para documentá-la. A aventura resultou em um filme que possibilita iluminação da platéia por transcender as histórias que conta, uma a uma, com franqueza e naturalidade.
Deparados com a consistência humana de oitentões como Ibrahim Ferrer, Compey Segundo, Ruben Gonzáles, Eliades Ochoa e Omara Portuondo, que apenas se expressam em humores e encantos, pegamo-nos olhando para nós mesmos, para o que defendemos e o que nos esforçamos para ser. É um filme bom para chorar, para lavar a sujeira que, desatentos, deixamos a fúria da modernidade impregnar em nosso ser. Não é aquele choramingo de complexo de culpa, de pena, de remorso e de afronta de injustiças. A vontade de chorar provocada por Buena Vista vem do encontro com a magnanimidade. Aqueles artistas, esquecidos, marginalizados pela idade e pelo bloqueio econômico ao seu país, não ficaram amargos nem aparentam mágoas.
Centrados em uma confiança exorbitante nos seres que são, na propriedade interna das suas almas e na certeza de que o tempo não corrói os verdadeiros talentos, eles esbanjam equilíbrio e vigor. Ao serem chamados para gravar um novo disco e participar do documentário, que incluiu um concerto no Carnegie Hall, o mais disputado palco norte-americano, os mestres da música cubana deram um show de respeitabilidade. Essa arqueologia espiritual, filmada por Wim Wenders, envolve o processo de arregimentação dos artistas, entrevistas sobre suas vidas, as casas onde moram, a vizinhança, as calçadas pacientes de Havana, seus automóveis e sua arquitetura à margem da modernidade.
Qualquer espectador apressado, acha logo tudo isso uma pobreza sem tamanho. Mas os velhos músicos e cidadãos cubanos declaram calmamente que têm o privilégio de fazer parte de um povo que não priorizou as coisas materiais. Pensando bem, Buena Vista escava um tesouro humano guardado a sete chaves no enigma do tempo para, quem sabe um dia, nos ajudar a refletir na hora de refazer o mundo. Mais dia, menos dia, precisaremos recorrer aos princípios da existência para sobrevivermos e o jeito de rir, de dançar, de se impor, de resistir e de tocar a vida da gente cubana é indispensável a qualquer projeto de sustentação da humanidade.
Ao tornar possível o acesso à preciosidade da alma daquelas pessoas, Buena Vista abre um horizonte de luz na entrada da grande caverna do mundo contemporâneo. Wim Wenders, sem querer ser Platão, oferece-nos com esse longa-documentário a chance de pararmos para observar se o que temos vivido é mesmo a realidade ou apenas o efeito das sombras que projetamos de nós mesmos nas paredes do fundo da caverna. O sucateamento etário, exigido pela velocidade e suporte físico das pessoas consideradas produtivas, é imediatamente ofuscado pela virtuose, tranqüilidade e compreensão do sentido da vida revelado por los abuelos cubanos. No embaraço dos valores que confundem os novos tempos, nada como um bom punhado de anti-heróis para estimular a discussão sobre o quanto temos investido no desperdício da vida.