Diz um antigo provérbio tuaregue que as árvores tendem a comemorar a entrada do machado na floresta simplesmente porque o seu cabo é de madeira. Essa sabedoria de quem vive na escassez de mata tem muito a contribuir com o estado de desertificação política brasileira, tanto na parte da população que, contraditoriamente, vibra com a perda dos próprios direitos, quanto no âmbito da que confunde receios com anseios e pratica um ativismo plan-plan-rataplan que acaba fortalecendo o ímpeto ra-tá-tá-tá.
A luta pelo horizonte imediato tem sido vã e velha. Os frágeis esforços políticos precisam de apoio da Palavra Livre para irem além do panfleto e alcançar o espírito que de fato move a coletividade. O Brasil precisa de métrica em seu desafio de colocar princípios nos campos dos interesses. Se as palavras não valem mais, catar sílabas nas estrofes da realidade pode ser uma tarefa fundamental para o estabelecimento do equilíbrio nas ações de cidadania.
Para isso é preciso criar uma escuta ativa, a fim de que a sociedade volte a colocar o coração para funcionar. Estou ouvindo RIMA, novo álbum de Antônio Nóbrega, com essa sensação. Nele, o artista pernambucano oferece versos rimados e cantados como alternativa ao enrijecimento da retórica de sinceridade abalada. São dez canções de fonte popular, sete em parceria com o médico e poeta também pernambucano Wilson Freire, duas com o poeta e pesquisador paraibano Bráulio Tavares e uma com o músico e poeta mineiro Rodrigo Bragança.
Não é à toa que Nóbrega considera RIMA uma obra que tem como coração a palavra, e com ela pulsa para despertar a nossa força social esmorecida com o sumiço da esperança. A rima recadencia sentimentos infortunados, atiçando rumos e prumos emocionais. A metáfora revigora o tempo rítmico do querer. A poesia tem o poder de provocar indignação e coragem de mudança, sem estimular o ódio. O canto poético devolve às pessoas o acesso a si mesmas.
O repertório – disponível nas plataformas digitais – começa pegado, agalopado, com uma metaleira a dar sentido de urgência na canção Minha Voz não Silencia Porque Poeta não Cala (c/ Wílson Freire). Evoca poetas de todos os tempos e lugares: de Homero a Paulo Leminski, de García Lorca a Cecília Meireles, de João Cabral a Bob Dylan, de Pablo Neruda a Carlos Drummond, pessoas que tiveram a sensibilidade de dar o “grito do mundo” para espantar dores existenciais e déspotas ocasionais.
A tirada de Nóbrega em RIMA me faz lembrar a canção Si Se Calla El Cantor, de Horacio Guarany (1925 – 2017), quando o cantor nativista argentino reflete que, se quem canta resolve se calar, a vida fica muda e a esperança morre de espanto, porque a vida em si é um canto. “Que não cale o cantor / Porque o silêncio covarde / Acata a maldade opressora”. E Antônio Nóbrega canta em peleja as desventuras dos tripulantes da Nau Catarineta repetidas na Nau Brasil e na Nau Planeta.
É vasto o leque de imagens e passagens presente nesta obra. Tem xote ferido de guerra, migrações, fome e negligências devastadoras, desaguando em uma triste toada de um “mundo tão Brumadinho”. Abre-se desde a haste de transfiguração pessoana dos próprios sentimentos até a haste da multiplicação da voz marielleana em ricochete. Antônio Nóbrega conta tudo cantando, para que as árvores não se iludam mais com o machado.