Aos japoneses do nosso Sítio
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 08 de Maio de 2008 – Fortaleza, Ceará, Brasil
O jornal A Tribuna, de Santos, noticiou no dia seguinte, que em 18 de junho de 1908, o navio Kasato Maru aportara naquela cidade com 781 imigrantes do Japão, que chegaram para trabalhar nas lavouras de café no interior de São Paulo. A data é considerada oficial e marca as comemorações do centenário do acolhimento das famílias japonesas que, fugindo da miséria e da fome, se mudaram para o Brasil para serem brasileiras e ajudar a construir um novo País que nascia do turbulento processo de abolição dos escravos.
Muitas homenagens estão sendo feitas a essa história. A mais autêntica que vi até agora é bem simples e talvez por isso mesmo tão genial. Trata-se de uma caracterização dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo no traço dos mangás, como são chamadas as histórias em quadrinhos japonesas. As telas do professor de HQ, Fábio Shin, fazem parte de uma exposição itinerante, cuja programação começa na Biblioteca Municipal Monteiro Lobato, em Osasco.
Perguntei a Fábio Shin qual a razão da escolha dos personagens de Lobato para essa homenagem e ele respondeu que além de o Sítio representar uma cultura essencialmente brasileira, marcante e com flexibilidade para misturas, seus personagens são visivelmente humanos, particularidade que os aproxima das figuras dos mangás. A partir dessa percepção ele conseguiu desenvolver uma simbiose estética de grande valor.
Fábio nasceu no bairro paulistano da Penha, em 1980, e não é sequer descendente de orientais. Aficionado por mangás, adotou o sobrenome Shin, que quer dizer “aquele que expressa os sentimentos do coração”, criou um estúdio de produção e passou a ser professor de quadrinhos no padrão japonês. Conta que não foi fácil “ser um brasileiro tentando viver em um meio aonde encontramos predominantemente japoneses”. Assim como Geraldo Borges, que em Fortaleza, faz caricaturas de pessoas, combinadas com super-heróis dos quadrinhos, Shin especializou-se em fazer caricaturas com traços de mangá, o que facilitou muito a execução da releitura gráfica dos personagens do Sítio da Dona Benta.
A obra de Monteiro Lobato (1882 – 1948) se renova a cada vez que a essência da brasilidade, sintetizada por ele no Sítio, entra em contato com as novidades do mundo, em curvas de transformação ulterior, delineadas pelo compartilhamento de espaços semióticos da cultura e suas pré-ligações sincréticas. Na “semiosfera” lobatiana a cultura desenvolvida nas diversas regiões brasileiras dialogam por meio dos sotaques dos seus sistemas de signos, códigos e linguagens, deixando sempre espaço para conexões com outros sistemas simbólicos.
O Sítio do Picapau Amarelo é um sistema de referências da maneira de ser do brasileiro e sua mania de abrasileirar o mundo. O que quer que exista, onde quer que seja, que possa contribuir para conferir corpo e alma à nossa narrativa, pode fazer parte desse ambiente saborosamente cuidado pela Dona Benta. A força da afinidade na diferença torna o Sítio um lugar atemporal e universal, propício à convergência de circunstâncias, realçada como adoção integradora nas imagens de Fábio Shin.
O compromisso da Dona Benta é com a dinâmica, com o fazer acontecer, priorizando mais a imaginação e a fantasia do que a cognição e o acúmulo de informações. No Sítio, as crianças comem de tudo e não são obesas. Sabe-se ali que é anti-infantil proibir guloseimas. A vida saudável se dá pela brincadeira. Por isso, Pedrinho e Narizinho estão sempre atentos, sempre ligados, prontos para uma nova aventura. A Emília, ah, a Emília transpira catarse, o avesso, a vida franca, a liberdade de existir. Tanto que mesmo tendo nascido boneca ela conquistou o direito de ser criança de verdade.
Observando o desenho da Emília, no traço de Shin, com um bonequinho de Lobato aos pés, procuro ver o alcance das suas variadas aplicações. Vejo que, se os olhos das heroínas já são destacados nos quadrinhos japoneses, na Emília eles parecem espelhos onde a nossa emoção mais forte e pura se reflete. Os mangás do Sítio revelam uma troca de olhares: de um lado, o Brasil vendo o Japão seguindo a correnteza do presente em um mundo flutuante; e, do outro, o Japão vendo o Brasil, a partir do seu jeito de se comunicar por meio de figuras e combinação de signos.
A jornalista e pesquisadora Sônia Bibe Luyten, em seu livro “Mangá – o poder dos quadrinhos japoneses” (Estação Liberdade, 250p, 1991), apresenta os mangás como vertentes pelas quais podemos aprender a desembaralhar as impressões contrastantes que temos daquele país. “Pela própria natureza do conteúdo das histórias, pode-se captar a realidade, as aspirações e o modo de vida das pessoas comuns do Japão moderno”. Chequei esse sentimento com Fábio Shin e ele complementa que o segredo do mangá está no fato dos personagens poderem sentir tudo o que as pessoas comuns sentem.
O sucesso dos mangás no Japão é atribuído, dentre outras coisas, à sua ligação direta com o público urbano, pressionado pelo colapso do tempo em um mundo subordinado à velocidade da eletrônica e marcado pela ansiedade e pelo tecnoestresse. Nesse contexto, os mangás realmente abrem um espaço direto de comunicação com o leitor, por apresentarem heróis inspirados em pessoas comuns e seus desejos de se superarem em um mundo cada vez mais competitivo.
Essa função de catarse ressoou no ambiente urbano brasileiro, o que garantiu lugar de destaque para a controvertida produção japonesa de quadrinhos no mercado editorial e de desenhos animados para televisão (animês) no Brasil, com alcance também para a tela do cinema e dos aparelhos celulares. Ao fazer os personagens do Sítio em mangá, Fábio Shin conectou dois sistemas distintos, considerando-se que, fora do Japão, a maior concentração de japoneses no mundo está em São Paulo.
Por ocasião da visita de Junichiro Koizumi ao Brasil, em setembro de 2004, a imprensa mostrou o primeiro-ministro japonês chorando de emoção ao ver os bairros da capital paulista onde vivem os japoneses e seus descendentes, alguns ainda preservando velhos e raros hábitos culturais do oriente. Este fato traduz para mim o profundo composto de fraternidade existente entre os dois povos e reforça o meu entendimento de que para ser brasileiro não é preciso renunciar raízes estrangeiras, basta se sentir filho desse lugar, onde as janelas estão sempre abertas às paisagens do mundo.
Lobato em mangá é uma das conseqüências narrativas do Sítio do Picapau Amarelo. Assim como antes ocorreu com a mitologia grega e as aventuras do falso Gato Félix. O Brasil de Lobato é o Brasil capaz de abrir espaços para dar sentido ao que hipoteticamente poderia não ter sentido. Se tivéssemos revistas de HQ e filmes de animação com os personagens do Sítio em mangá, certamente as crianças e os animadores passariam a lhes atribuir vozes diferentes das atuais, pois seriam convidados a tomar nova posição com relação aos personagens.
A eureca de Shin acontece como uma extensão natural da grandeza de concepção do Sítio do Picapau Amarelo. Ao ser colocado no plano da cultura planetária, o Sítio Brasil tem o poder de expressar as particularidades da sua própria cultura. A obra de Monteiro Lobato se pronuncia no universal pelo que de brasileiro consegue sintetizar do mundo. É uma mensagem em si e não apenas um meio por meio do qual o escritor sonhou seu País; a mensagem de uma gente modelada na multiplicidade de vínculos humanos desenvolvidos ao sabor das misturas.