O Movimento Negro está passando por um rangido na sua engrenagem já tão desgastada na estrada de lutas pelos direitos da gente preta em um mundo de racismo e desigualdade. O grão de areia colocado pelo reality show Big Brother Brasil (BBB) da Rede Globo no eixo de percepções dessa ação política suscita interpretações corrosivas que podem se transformar em risco de deslegitimação do movimento na sociedade.
Como uma atração maliciosamente estruturada na hostilidade entre os participantes convidados, o BBB formou quase a metade do grupo da versão atual com uma galera que mantém algum vínculo com o Movimento Negro. O comportamento xenófobo, discriminatório e equivocado de algumas dessas pessoas, que fazem na prática o que combatem em discurso, passou a ser confundido como ato negativo do movimento.
Diante de uma armadilha midiática tão ardilosa faz-se necessário fortalecer a organicidade desse bem-sucedido movimento de transformação e emancipação social, repropondo o seu pensamento crítico, de modo a colocá-lo em favor da causa, e não apenas de um ou outro indivíduo que a defende. O que surge como areia na engrenagem pode ser uma oportunidade de correção dos métodos de desconstrução do racismo e de promoção da igualdade de bem-estar social.
Em contrapartida, a viralização dessa espécie de metonímia da negritude não recomenda que as referências de opinião do movimento entrem no bate-boca de verborragia desconstrutiva, como fez uma de suas teóricas no início deste mês em uma rede social. Ela publicou um post sobre o assunto revelando aborrecimento com “o fato de vermos lutas tão sérias sendo esvaziadas e tratadas de modo leviano”, enquanto há tantas questões relevantes na pauta do país.
Esse comentário foi o suficiente para gerar um falatório catártico oscilando entre aplausos e insultos. Isso não é novidade no mundo inflamável das redes. Contudo, ao ser acusada de arrogante, inatingível, prepotente e de estar mudando de assunto em vez de encarar a situação, ela saiu pontuando respostas no mesmo nível, argumentando que tais discordâncias se davam por ignorância de quem não sabe interpretar seu pensamento.
Nessas circunstâncias a fala passa a ser mais efetiva quando aproveita esse tipo de engodo para abrir espaço à pergunta travada pela compulsão dos seguidores, sejam militantes ou reacionários. O Movimento Negro existe enquanto instância de atuação entre divergências e consensos no jogo de construção e de demolição de valores na dinâmica social. Trata-se, portanto, de um campo potência que pertence ao todo da sociedade, inclusive aos que ainda não o reconhecem.
Há coisas que estão antes e depois da verdade; são aquelas que definem as razões de ser da vida e dos propósitos do viver. Assim como as antigas arenas dos gladiadores e os tradicionais picadeiros circenses, as telas são lugares de revelação da condição humana que, em certos casos, devem provocar a necessidade de um debate sério a respeito dos seus conteúdos.
O amadurecimento permanente do Movimento Negro passa pela fuga dos embates reduzidos a rinhas segregadoras e às bolhas de razão autossuficiente. E quando a ansiedade militante e as dores das injustiças represadas caem em ofertas traiçoeiras de visibilidade e ascensão, torna-se ainda mais indispensável a lubrificação do conceito transformador desse movimento em sua dimensão civilizacional.