As bolhas do fenômeno
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Sábado, 10 de Junho de 2006 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Desde a Copa do Mundo de 1982, na Espanha (vencida pela Itália) que o torcedor brasileiro não se animava tanto com uma seleção tão cheia de talentos excepcionais como a atual. Nesse intervalo, ganhamos duas estrelas na camisa canarinho (1994, EUA e 2002, Japão/Coréia), mas duas estrelas bordadas friamente em máquinas industriais e não à mão, com calor humano, como foram ornadas as três primeiras (1958, Suécia; 1962, Chile e 1970, México). Gostamos de nos envaidecer com o espetáculo lúdico que temos a oferecer ao mundo. E se der para ganhar jogando bonito, com criatividade e fantasia, que a taça não se acanhe de vir mais uma vez para o Brasil.
Das dezessete Copas do Mundo realizadas até hoje, ganhamos cinco. Temos dois títulos de diferença para os segundos colocados (Alemanha e Itália) e muitas possibilidades de sermos campeões mais uma vez, no torneio da Alemanha. Apesar do excelente e virtuoso quadro de atletas, escalado pelo técnico Carlos Alberto Parreira, sabemos que não vai ser fácil: os campos alemães são bem menores do que os nossos, o que reduz o espaço cênico do futebol arte; e os interesses políticos e econômicos da Fifa (Federação Internacional de Futebol) certamente estão mais inclinados à redução da distância entre a quantidade de títulos do Brasil e de outras seleções campeãs do que no hexa, e os seus árbitros sabem disso melhor do que nós.
O cenário é de grandes desafios e isso torna a disputa mais emocionante. Esses e outros fatores externos, capazes de influenciar nos resultados das partidas, fazem parte do jogo. Já os enfrentamos no passado e eles não nos amedrontam. Para mim, a maior dificuldade para vencermos a copa da Alemanha está dentro de casa e se concentra na figura do jogador Ronaldo, camisa nove. A pior situação para a nossa equipe é a tensão psicológica causada pela relação conflituosa entre a pressão das expectativas dos torcedores brasileiros e os interesses comerciais da Nike, marca do mesmo país de George Bush, detentora de um histórico de envolvimentos em polêmicas de exploração de mão-de-obra escrava e infantil no continente asiático. Não consigo entender a razão da indústria brasileira não aproveitar a elasticidade de oportunidades criada pela metáfora do futebol para, assim como a nossa seleção, ser campeã no mercado de marcas de chuteiras, camisas, bolas e tudo o que envolve o maior esporte de massas do planeta.
Na copa da França (1998) quando a escalação de Ronaldo foi imposta na partida final, mesmo após uma convulsão de motivos não explicados até hoje, perdemos o jogo bestamente para a própria França. No depoimento que prestou à CPI que investigou o contrato da CBF com a Nike, na Câmara dos Deputados, em Brasília, no mês de novembro de 2000, o jogador Edmundo disse que no futuro ainda saberíamos a verdade sobre o assunto. Afirmou que o representante da Nike tinha acesso livre a todas as dependências da concentração e que o cartola Mário Zagallo esteve nos aposentos do Ronaldo por ocasião da “bruxaria” e negou tudo na Comissão Parlamentar de Inquérito, ao falar que só tinha tomado conhecimento do ocorrido três horas depois. As investigações poderiam ter revelado muitas falcatruas que os indícios anunciam, mas a CPI teve marcação colada e não conseguiu furar a defesa da chamada “bancada da bola”.
O Brasil estréia na próxima terça-feira, dia 13, contra a Croácia. Talvez o jogo mais difícil da primeira fase. No último amistoso, contra a Nova Zelândia, realizado no domingo passado, dia 4, o jogador Ronaldo deixou o campo com os pés cheios de bolhas causadas pelas chuteiras da Nike, que fornece todo o material desportivo para a seleção brasileira. Pela televisão vi o cartola Zagallo dizendo que os pés do “Fenômeno” estavam em “carne viva”. Mas é estranho como ninguém comenta que as tais chuteiras que causaram as ditas bolhas são da Nike. Esse sim é um “fenômeno” curioso do marketing: a fabricante de chuteiras patrocina a seleção para atestar e divulgar o valor do seu produto e o seu próprio garoto-propaganda fica com bolhas nos pés.
Há momentos em que, sinceramente, não sei se devo ter raiva ou pena do Ronaldo. Ele é um bom jogador, merecia outra sina. Mesmo sabendo que pode haver todo um esquema para obrigar a seleção brasileira a jogar em função dele, simplesmente para que a Nike venda mais material desportivo, fico torcendo para ele se dar bem na partida. Não sei nem se é saudável torcer assim. É uma sensação estranha de vibração meio contida. Fico pensando na armação de mercado em que o cara se meteu. Por aparentar ter uma personalidade fraca, deixou-se cair nas mãos dos espertos e não consegue se livrar do mundo das aparências. Vive dependente de simulações de aparecimentos ao lado da modelo da vez e de outras jogadas marqueteiras tipo a que chegou a produzir um ridículo corte de cabelo em forma de triângulo.
Sei que o jogo no mundo das celebridades é bruto. Quem não entra na parada é chutado para escanteio. Aconteceu com o Romário, que não se deixou levar pelos encantos das falsidades. Os cartolas de todos os níveis nunca engoliram o fato de ele ser um campeão do mundo e continuar jogando bola na praia com os amigos de infância que o chamam carinhosamente de “beção”, forma sincopada de cabeção. O que realmente dá prazer, não dando dinheiro, é pouco interessante para a cartolagem. Romário teve também a dignidade de amar publicamente a filha que nasceu com Síndrome de Down. E isso, no mundo da fama, não é recomendável que um ídolo faça. Pode afastar os fãs da suposta perfeição das aparências.
Torço religiosamente para que os novos craques que estão sendo revelados não se deixem contaminar pelo poder alucinógeno desses esquemas que compram almas em troca de glórias. É que, mesmo para quem tem talento comprovado, a provação para ocupar um espaço no estrelato é tamanha que fica difícil suportar. Lembro o quanto na Copa do Mundo passada (2002, Japão/Coréia) craques como o Ronaldinho Gaúcho tiveram dificuldade de destaque para não fazer sombra ao Ronaldo “O Fenômeno”. Chegou a ser constrangedora a pressão de determinados setores da mídia em cima dele para que ficasse assumindo a cada entrevista que era fã do Ronaldo. Se foi incômodo para mim, como mero telespectador, imagino o quão não deve ter sido desagradável para o Ronaldinho Gaúcho.
A mais nova investida dos intermediários da Nike para fazer o Ronaldo aparecer na copa da Alemanha é a pregação da necessidade de “O Fenômeno” se igualar ou superar Pelé na artilharia brasileira em copas do mundo, com doze gols. “Faltam somente três!”, bradam entusiasmados, como se alegassem que todos nós devemos compreender que o Ronaldo tem uma missão a cumprir e, por isso, precisa jogar de qualquer jeito. É uma lástima essa mediocridade. O Ronaldo é um bom jogador, mas não dá para ficar comparando em nada com craques do nível do Pelé, Garrincha, Romário e Ronaldinho Gaúcho. Deve ser um inferno para “O Fenômeno” sustentar essa condição superdimensionada. Ele é uma bolha em si e isso repercute mal na hora do jogo, no espírito de equipe e, evidentemente, arranha a imagem do maior e mais amado dos símbolos da brasilidade, que é a nossa seleção de futebol.