As ruas, as mídias e o senso de realidade
Artigo publicado no Jornal O POVO, Caderno Vida & Arte, pág.4
Quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014 – Fortaleza, Ceará, Brasil

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FAC-SÍMILE

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A adesão crescente das pessoas à ocupação das ruas, muitas vezes em massa que se forma repentinamente, como se as janelas dos computadores e as portas dos prédios fossem abertas de uma vez, em uma espécie de final de expediente do trabalho de viver isolado, traz ar puro à experiência democrática. A ponte que une é a mesma que separa os fatos das essências e que possibilita a aproximação e o distanciamento da compreensão do significado da ocupação das ruas e sua repercussão nas mais diversas mídias.

Ir para as ruas tanto pode ser atitude motivada por atração das cores e dos pandeiros do carnaval, como ato de indignação política ou mesmo pelo fascínio ao fogo e ao estilhaçar de vidros quebrados. Tomar posse dos logradouros públicos é, por si, uma provocativa quebra de inércia. Quanto mais se vai à rua, mais gente é puxada pelo magneto da maioria real. O pensador búlgaro Elias Canetti (1905 – 1984) resume bem essa afluência aglutinadora: “A ânsia de crescer constitui a primeira e suprema qualidade da massa. Ela deseja abarcar todo aquele que esteja a seu alcance” (Massa e Poder, p. 15. Companhia das Letras, São Paulo, 1995).

Alterações com a respiração acelerada e o aumento da tensão arterial são pronunciamentos do corpo que diferem apenas em intensidade, quando dizem respeito ao estado de contentamento, à repulsa aos deboches do poder e ao impulso social violento. Quer dizer, a ocupação das ruas é um fenômeno simultaneamente orgânico e social e, como tal, um evento propício ao que Canetti chama de descarga, aquele “momento em que todos os que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a sentirem-se iguais” (Idem, p. 16).

No caso das animações nas ruas durante o período de carnaval, o encontro permite que a experiência se dê no plano da fantasia, de outros modos de vida distintos daqueles que vivemos no concreto do dia-a-dia. Para o filósofo italiano Gianni Vattimo, “A experiência estética faz-lhe viver outros mundos possíveis, e mostra-lhe assim também a contingência, a relatividade, o caráter não definitivo do mundo real no que se encerra” (A sociedade transparente, p. 16, Relógio D’Água, Lisboa, 1992).

Vattimo trabalha com a tese de que na sociedade da multiplicação efusiva das imagens do mundo a ideia de emancipação tem, em sua oscilação, a pluralidade e o desgaste do próprio princípio da realidade. Isso, segundo ele, pode não ser uma grande perda, considerando que, para a lógica perversa da hipermodernidade, o mundo dos objetos tornou-se o mundo das mercadorias e das imagens.

Neste aspecto, a contraposição manifestada nas ruas tende a ser uma atitude neurótica pela libertação das diferenças, o que não significa o abandono de todas as regras. A libertação das diferenças é, portanto, um ato de passagem com que as ruas “tomam a palavra”, se apresentam e “se põem em forma” de modo a tornarem-se conhecidas por meio de uma infinidade de possibilidades de informações sobre os acontecimentos, que vai tornando menos concebível a própria ideia de realidade.

O que parece ao mesmo tempo ameaçador e sedutor, enquanto exercício de prazer, liberação de tensão e rompimento com a impotência, é o sacudir da suposta fraqueza na criação de novos circuitos de progressiva emancipação. É comum recorrer ao fogo, elemento considerado por Canetti como o mais impressionante dos meios de destruição, por ser fortemente atraente e visível de longe.

Mas o escritor búlgaro realça mesmo o espatifar de objetos quebradiços como o grande estímulo da massa à destruição. Para ele, o quebrar de vidraças, espelhos, vasos, quadros e louças causa ânsia destrutiva, por emitir vigorosos sons vitais de uma nova criatura, como “os gritos de um recém-nascido (…) Vidraças e portas são partes dos edifícios que constituem a porção mais frágil de sua separação do exterior. Uma vez arrombadas, o prédio perde sua individualidade” (Canetti, p. 18).

Na sociedade da comunicação cruzada e da pluralidade das culturas, a ocupação das ruas e das redes de relacionamento virtual é importante para a democracia, por desdogmatizar o controle da esfera pública e colocar a massificação cultural e seus produtos em um patamar de nova condição política. Na perspectiva do pensamento mcluhaniano, segundo o qual uma sociedade se define pelas tecnologias de comunicação que dispõe, tudo isso rompe com o temor do contato tão em voga nos tempos atuais.

Na opinião de Elias Canetti, a massa densa é formada por corpos que se comprimem com naturalidade, criando a oportunidade de inversão desse medo do contato com o outro. “Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido. Ele quer ver aquilo que o está tocando; quer ser capaz de conhecê-lo ou, ao menos, de classificá-lo” (p. 13). Há um confuso clima de versões e inversões, no qual, mesmo assim, a sociedade vai se descobrindo em sua disposição participativa, enquanto os poderes constituídos, ao priorizar a repressão, demonstram que não estão entendendo nada.