As sementes das favelas
Artigo publicado no Jornal Diário do Nordeste, Caderno 3, página 3
Quinta-feira, 09 de Junho de 2011 – Fortaleza, Ceará, Brasil
Logo que vi a capa do livro “Favela”, parte da coleção infantojuvenil que a editora WMF Martins Fontes está lançando, inspirada no programa “Um pé de quê?” (Canal Futura), de Regina Casé, com direção de Estevão Ciavatta fui atraído, além do título em si, pela ilustração de Eloar Guazzzelli Filho, que combina figuras do povoado de Canudos e a silhueta da árvore que inspira a publicação, com fundo solar de chapada cor amarela.
A mim, me chamou a atenção esse trabalho porque, se por um lado vejo uma planta típica do nosso semiárido em destaque, por outro lado, sempre tive uma atração muito grande por tudo o que a favela significa. Ela faz parte da minha infância. Era comendo farofa de semente de favela que, juntamente com meus amigos, aguentávamos brincar o dia inteiro na mata branca em intermináveis lutas de cavalos e espadas feitos com talo de carnaúba.
No quintal da casa onde eu nasci, em Independência, nasceu um pé de favela sem espinho, que virou xodó de pesquisadores. Recordo-me que no início da década de 1970, época de intensa seca, o então governador César Cals, na busca de alternativas agroindustriais para o semiárido, pediu para ir ao nosso quintal a fim de conhecer o pé de favela sem espinhos.
Lembro-me que nas brincadeiras de esconde-esconde eu subia em seus galhos e ninguém conseguia me achar porque no senso comum é impraticável enfrentar os espinhos de um faveleiro e suas “ferroadas”. Espinhar-se com favela é quase levar uma picada de marimbondo; a pele fica irritada e a inflamação é bem dolorosa.
Quando meus filhos eram ainda bem pequenos fiz questão de levá-los mata adentro para comer semente de favela e aprender a fazer carrapeta espetando um espinho de mandacaru na parte da cápsula (fruto) protetora das sementes, que fica presa aos ramos. É um brinquedo saltitante, que se coloca em rotação com a fricção dos dedos no espinho. A carcaça é tão resistente que era comum também a brincadeira de bila (bola de gude) com o fruto da favela.
Ao alugarmos o terreno onde está o pé de favela sem espinho, colocamos na cláusula 20 do contrato: “O LOCATÁRIO compromete-se a preservar um faveleiro (jatropha phyllacantha) sem espinhos, de valor científico, existente no imóvel, objeto desta locação”. Por estar presente bem no centro da área alugada, a favela sem espinhos foi vista como um incômodo. Um dia, de forma criminosa, alguém raspou todo o seu tronco em mais de um metro, para que morresse perdendo seiva. Em um incrível fenômeno botânico, a favela regenerou-se e continuou viva.
Mais do que ter na favela como companheira de brincadeiras, aprendi a admirar essa árvore como fonte de proteína, carboidrato, cálcio, fósforo e ferro, fundamentais na vida de vaqueiros, cangaceiros e, de forma mais emblemática, na sustentação da comunidade messiânico-socialista de Canudos. As folhas amareladas que caem das favelas no “outono” catingueiro asseguraram a forragem para a manutenção das cabras, cujo leite e carne contribuíram efetivamente para a sustentação do arraial liderado por Antônio Conselheiro.
Além dessas agradáveis e particulares reminiscências o livro “Favela” alinha-se ao que penso em termos de recurso para a aprendizagem escolar, assentada nos alicerces da cultura. A associação do nome da árvore aos aglomerados urbanos periféricos, tendo Canudos como fonte inspiradora, apresenta de forma leve e conceitual aspectos da nossa história, geografia, ciências e língua, em uma dinâmica transversal aplicável às exigências do ensino e da educação na atualidade.
Com imagens puxadas a história em quadrinho, fotografia e até desenho a lápis, feito pelo jornalista e escritor Euclides da Cunha em 1897, o livro é marcado pela recorrência a fontes históricas, como o jornal sergipano “O Rabudo”, de 1874: “chegado (diz elle) do Ceará (…) Esse mysterioso personagem, trajando uma enorme camisa azul que lhe serve de habito a forma do de sacerdote, pessimamente suja cabellos mui espessos e de pés nus (…) não aceita esmolas (…) o povo fanático sustenta que n’elle não tocarão” (p. 12/13).
A publicação mescla com equilíbrio o avanço militar e a resistência do vilarejo de Canudos, em uma paisagem que comporta a favela árvore e a favela comunidade, enquanto “montão de casebres, presos em rede inextrincável de becos estreitíssimos” (p. 26), de acordo com o olhar de Euclides da Cunha em “Os Sertões”. Faz uma comparação entre as explosões da pólvora das armas, com o estalar dos frutos da favela que lançam à distância suas sementes em busca de solo propício à reprodução. “Ao contrário dos tiros lá embaixo, eles difundiam a vida” (p.31).
A adaptação de Fabiana Werneck Barcinski, conta bem como a palavra “favela” migrou para o sudeste juntamente com os soldados que cometeram o massacre do arraial do Conselheiro. É interessante a abordagem crítica com que ela fala da situação de relegados a que eles foram submetidos na ocasião em que chegarem ao Rio de Janeiro. Sem ter onde morar, ocuparam o Morro da Providência, que apelidaram de Morro da Favela, numa alusão ao morro que serviu de ponto de ataque a Canudos. Daí, diz o texto, eles “perceberam que tinham mais a ver com os inimigos que tinham derrotado do que com seus comandantes” (p.40).
A partir de então, os descendentes de escravos, de índios e de brancos pobres, que procuraram abrigo nos morros cariocas passaram a ser chamados de favelados. É curiosa a circularidade do termo “favela” no momento em que há um forte refluxo de “favelização”, que parte dos grandes centros urbanos levando a violência às pequenas cidades do interior. A palavra “favela” é tão consistente em sua essência que nem o fato de ter sido modificada por força analógica e de ter recebido outro sentido, a fez perder a força do seu conteúdo original, como expressão que comunica vida em um mundo seco.
O livro “Favela” tem alguns descuidos de troca de regra pela exceção, mas nada que comprometa o seu valor. Fala, por exemplo, que a favela é uma “árvore solitária” (p. 7), que tem o tronco “curto e ramificado desde a base” (p. 23) e que seus frutos são “recobertos por pelos urticantes” (idem). Não é bem assim: (a) existe mata fechada de favela, (b) a foto da árvore publicada no próprio livro tem tronco sem ramificação (p.45) e (c) as carcaças dos frutos são protegidas por uma espécie de pele adesivada coberta por pequenos espinhos, diferente, por exemplo, das cerdas macias, mas espinhantes, encontradas nas frutas de palma.
A favela é uma árvore que deu cara e familiaridade a uma situação de apartação, quando na verdade deveria ser o oposto. O livro “Favela” mostra como a trajetória do termo o empurrou a esse significado controverso, reduzindo suas possibilidades no contexto histórico. Tivesse sido difundido a partir da voz derrotada talvez fosse sinônimo de resistência e capacidade de renovação. Tivesse sido aproveitado pelo seu potencial econômico, social e cultural, talvez fosse nome de prêmio de inovação.
Em meio às discussões sobre a avançada desertificação da caatinga e sobre a busca de soluções para a preservação e recuperação da sua rica biodiversidade, ter a favela como título de livro é muito bom porque atribui dimensão simbólica a uma árvore que é aparentemente comum. Esse tipo de valorização evidencia que a favela não é só uma planta do semiárido, mas uma peça importante da natureza e da história da relação do sertão com os centros urbanos no último século.