A Covid-19 é um produto massivo da espiral de uma época em desmesura. Em seu espectro de danos, essa doença gera falta de ar nos pulmões da intolerância social e ameaça o destino das vontades fúteis. Ante a pandemia, o indivíduo desprovido de alteridade vê o esvaziamento da sua satisfação particularista e entra em situação de sufoco.
O fato de a principal saída para reduzir a propagação do vírus ser a de buscar proteger uns aos outros, de preferência ficando em casa, gerou uma insuficiência respiratória nas ideologias de segregação. Ao ser submetido à aventura da convivência física entre paredes, o indivíduo sofrente de só pensar em si caiu em desamparo.
Sentindo-se invadido pela proximidade contínua de pessoas, muitas vezes em circunstâncias cogeracionais, o individualismo insidioso, sem limites e sem consideração ao outro, enfrenta a oportunidade de recompor vínculos de corpo, pensamento e atitudes no exílio da própria casa, por meio da elaboração de novos enredos e relatos da marcha do mundo.
Essa conjuntura de redução da vida à volúpia das ambições desmedidas e suas consequências patológicas instigou a mim e à cantora gaúcha Laura Finocchiaro a compormos a música “Asfixia”, que será lançada brevemente como contribuição à formação de representações emotivas em um mundo de materialidade vacilante.
A constelação de fatores que se articulam na expectativa de reaproximar o ser humano da comunidade planetária de seres vivos está em ebulição nos campos da arte. A nossa balada punk une-se aos atos estéticos de partilha de evidências sensíveis comuns, como instrumento de interpelação do si, na tentativa de chegar junto do acontecimento e sua condição trágica.
Trata-se de uma música sobre o sufoco, a vertigem e a tontura provocados pela sensação de asfixia em escala mundial: “O ar acabou pra mim em Wuhan / Acabou em Nova Iorque / Já não respiro nas ruas de São Paulo”. Gente em transe, em trânsito desesperado, desfalecida pela tensão na governança do sofrimento e da necessidade de trocas inter-humanas.
Em canto sibilado, Laura toca guitarra, teclado, synths e bateria e conduz os loops eletrônicos em voragem rítmica espectral, como ecos na escuridão em busca de respostas ao desconforto. “Sei que você me chama de algum lugar / Mas não consigo entender nada”. E, assim, vamos trocando o sentir pelo pressentir a cada verso: “E morto, de olhos arregalados / Não vejo nada, não saio de mim”.
O ar parado, o isolamento, as máscaras, tudo parece amedrontar as percepções contagiantes, presentes na insuficiência de respiração do adeus que não para de se esvaziar em números, quase como um constrangimento de estar vivo, contraditoriamente sendo ninguém, sem ter forças sequer para sonhar: “Falta ar no cruzamento das fronteiras / Desse tempo calculado em adeus”. É tenso o desamparo trazido pelo acontecimento em forma de despedidas que não existem.
A necessidade de manter a conexão com quem parte e o luto inaceitável revelam-se no discurso interior de quem fica: “Lembro do dia em que provei / A dor do seu silêncio final”. O aperto no peito e a aflição não tiram de “Asfixia” a pulsão vibrante, por restar ainda uma crença na potência transformadora da pandemia no comportamento social: “Sei que ainda posso escapar / Do meu generoso egoísmo / E me reconhecer na sua respiração”. Inspira, expira, música cura!!!
Ouça Asfixia: