Atitudes que denotam preconceitos sociais podem ter razões culturais ou ideológicas. A discriminação de alguém com deficiência física ou mental é diferente da negação racista e xenófoba, por exemplo. Ambos, no entanto, recaem no campo do preconceito. Há gestos de segregação que podem levar indivíduos ao enfrentamento dos preconceituosos e outros a se retraírem na própria dor. Um e outro causam sofrimentos que desafiam os ideais civilizatórios.
O filme Mucize (2015), drama turco disponível na Netflix, aborda a prática de preconceito em um cotidiano comunitário. Com elenco profissional e atores do povo muito bons, o diretor Mahsun Kirmizigül enche a tela com lindas paisagens montanhosas e com a comovente história de Aziz, o filho mais velho do chefe do vilarejo, que, por ter deficiência cognitiva e limitações no corpo, todos tiram sarro com ele, restando-lhe apenas a companhia de um cavalo, do vento e da vertigem dos penhascos.
Para quem acredita na educação como fonte de emancipação, Mucize, que quer dizer ‘milagre’ em turco, é uma obra de valorização do educador como fomentador de novas significações sociais. Tudo começa quando o professor Mahir é designado pelo governo para dar aulas às crianças de um vilarejo no alto das montanhas, onde não há sequer um prédio escolar e a ordem é assegurada por grupos bandoleiros.
Ao constatar a precariedade do lugar, o professor resolve fazer valer o seu compromisso e mobiliza as pessoas para a construção da escola. Com o respeito que ganha dos moradores, consegue o consentimento da comunidade para incluir as meninas em sua ação educativa, o que parecia algo impensável. Quando percebe que Aziz dá sinais de interesse pela dinâmica das aulas, Mahir o convida a entrar, e orienta as crianças que viviam zoando com ele a tratá-lo com decência.
Todos são broncos naquela localidade. A maquiagem reforça isso nas caras de traços rudes e dentes estragados. Mas todos também são bons, em que pese as maldades pregadas em Aziz, e ficam altamente surpresos com o interesse do ‘doidinho’ em descobrir que existe. Mais perplexos ficam ainda com o fato de verem os rabiscos que ele faz, e de o ouvirem pronunciar, com muito esforço, o nome do pai. A oportunidade que o professor deu ao protagonista de ser visto como menos estranho do que parecia ser deu início a uma revisão de preconceitos naquela comunidade.
Ninguém ali jamais imaginara o Aziz como um homem casado. O senso comum era o de que ele não serviria para o amor. Por força de uma circunstância especial Aziz acaba recebendo como esposa a linda filha única do chefe de outro vilarejo. No que Gule, a noiva, descobre a condição do corpo e da mente do marido, entra em desespero, mas resolve assumir a determinação cultural e espiritual que a colocou naquele destino.
Na noite de núpcias, quando a tradição local manda o noivo arrancar a cabeça de um pombo vivo dentro do quarto, sinalizando para a mulher o que pode acontecer com ela se vacilar, a primeira coisa que Aziz faz é soltar o pombo. Daí abre-se uma relação única entre ele e a esposa, que passa inicialmente por um misto de mulher e cuidadora. O problema maior enfrentado por ela é a zombaria hostil das outras mulheres casadas, que forçam Aziz e Gule a fugir com apoio de Mahir, voltando tempo depois para fazer uma revisão final de preconceitos.